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Sumaúma: Jornalismo do Centro do Mundo
Edição 28
quinta-feira, 26 outubro, 2023
A desumanização dos animais
Eliane Brum, Médio Xingu, Altamira, Amazônia, Brasil
Semeadora e diretora de SUMAÚMA

“Estamos lutando contra animais humanos e agindo de acordo com isso”, declarou o ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, na tentativa de justificar o injustificável: o corte de água, eletricidade, gás e comida para a população da Faixa de Gaza, após o massacre de civis israelenses promovido pelo grupo terrorista Hamas. Frases com conteúdo semelhante são escutadas por correspondentes que cobrem a guerra no Oriente Médio – ou o massacre, dada a desproporção das forças – e por pessoas comuns ora de Israel, ora da Palestina, como mostrou o jornalista Yan Boechat, em reportagem da Folha de S.Paulo. O outro é o “animal”, aquele que não pode mais ser visto como “humano”. Ainda que seja obrigatório assinalar a enorme diferença de uma autoridade chamar publicamente outro povo de “animal”, a palavra escolhida pelo senso comum para nomear o outro, seja israelense ou palestino, exemplifica o que vários articulistas mundo afora definiram como a “desumanização” daqueles étnica ou racialmente diferentes, raiz de genocídios ao longo da história. Como o dos Tutsis, em Ruanda, chamados de “baratas” pelos Hutus. “Matem as baratas”, era a exortação pela rádio e pelos jornais. E mais de 500 mil Tutsis foram mortos em cem dias.

Ao tratar o outro como “animal”, o extermínio estaria justificado. Bastaria promover a desumanização para autorizar a matança. Essa desumanização mútua talvez seja o único consenso explícito entre a extrema direita israelense liderada por Benjamin Netanyahu e as lideranças do Hamas. Para ambos os lados a única saída é varrer o outro não apenas do território, mas da vida – e para isso toda a violência contra populações civis seria legítima. Mas será que é de desumanização que se trata?

Numa perspectiva eurocêntrica, nenhuma dúvida. Vale a pena, porém, se arriscar a pensar a partir de outras tradições filosóficas, que desafiam o antropocentrismo – a espécie humana no centro. Para grande parte dos povos originários das Américas, por exemplo, “bicho é gente”. A humanidade está no ponto de vista de quem olha. O que significa dizer que, para si mesmos, os animais são humanos. Não é possível explicar algo tão complexo num editorial – para aprofundar essa ideia sugiro mergulhar no fascinante conceito de “perspectivismo ameríndio”, tecido pelos antropólogos brasileiros Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze com base no conhecimento de diferentes povos originários.

Assim, o que todos compartilham seria não a “animalidade”, mas as “humanidades”.
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