O garimpo é uma atividade antiga no Brasil. O primeiro documento que registra a extração de ouro por aqui data de 1681. Como acontece com outras formas de exploração dos chamados “recursos naturais”, a história dessa atividade coincide com a história da colonização do país – e, particularmente, da Amazônia. Este é um ponto que vale destacar: os séculos passam, mas permanece a ideia de que a natureza está aí para que se tire proveito dela, para que se extraia das florestas, rios e igarapés, do solo e do subsolo tudo o que é passível de se transformar em riqueza material. Até o esgotamento.
Trata-se mesmo de um extrativismo predatório. No caso do garimpo, como é realizado hoje – em especial na Amazônia –, esse aspecto destruidor fica ainda mais evidente. A partir do final do século 20, a garimpagem começou a se mecanizar na região. Esse processo se intensificou muito na primeira década dos anos 2000, consolidando-se com a inserção, nos canteiros, de retroescavadeiras, tratores de esteira e pás carregadeiras (as chamadas “PCs”). As transformações tecnológicas garantiram maior produtividade aos garimpos e, consequentemente, têm contribuído para o aumento assustador do desmatamento causado por essa atividade, como temos visto desde 2015 no Brasil.
Há uma face dessas transformações tecnológicas ainda pouco observada, embora seja determinante para o avanço do garimpo: o perfil de seus financiadores. Hoje, a atividade é promovida por organizações criminosas fortemente capitalizadas – capazes, por exemplo, de repor, em questão de semanas, PCs destruídas em operações do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). E estamos falando de máquinas que podem custar, cada uma, 1 milhão de reais!
Não é à toa que notícias sobre os atores econômicos e políticos por trás da garimpagem ilegal citam sempre volumes exorbitantes de dinheiro. Por exemplo: na tentativa de fechar o cerco aos financiadores dos garimpos que operam na Terra Indígena (TI) Yanomami, a Polícia Federal chegou, em fevereiro de 2023, a uma organização criminosa que movimentou 422 milhões de reais em cinco anos.
Atuando nos estados de Roraima, São Paulo e Goiás, essa organização tem entre seus principais nomes um empresário chamado Bruno Cezar Cecchini, que segundo reportagem da Agência Pública é dono de uma aeronave onde foi encontrado, em 2019, o equivalente a 18 milhões de reais em barras de ouro. Cecchini também atua no Pará. Junto com o coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo Homero de Giorge Cerqueira – que presidiu o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) na gestão de Jair Bolsonaro –, ele tem feito lobby para abrir a Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós à exploração mineral.
Vale notar que essa descentralização dos principais nomes por trás do garimpo ilegal é uma das características contemporâneas dessa atividade. As pessoas que de fato promovem a garimpagem hoje – e mais lucram com ela – estão espalhadas por diversos estados do país, muito longe dos canteiros enlameados e repletos de mosquitos transmissores da malária.
Há ainda aspectos políticos nessa transformação sociológica (que acompanhou a transformação tecnológica) da atividade. O caso de Valdinei de Souza, o “Nei Garimpeiro”, ilustra bem esse ponto. Investigado por comprar mercúrio contrabandeado, Nei tem uma fortuna estimada em mais de 1 bilhão de reais e é dono de empresas do setor minerário em Mato Grosso e no Pará. Segundo o Ministério Público Federal (MPF), dezenas de milhões de reais lucrados por ele têm origem em garimpos ilegais – que, por sua vez, geram prejuízos socioambientais de outras dezenas de milhões de reais. Do montante de sua fortuna, ao menos 100 mil reais foram destinados à campanha à reeleição de Jair Bolsonaro e, em 2020, recursos seus financiaram mais de 60% da campanha de Valmir Climaco para a prefeitura de Itaituba, a capital do ouro ilegal no país, no estado do Pará.
Não deveria causar espanto o fato de que durante o governo Bolsonaro tenha havido um fortalecimento político do garimpo sem precedentes no período democrático. Ainda em 2019, o primeiro escalão da gestão bolsonarista mostrou que manteria gabinetes receptivos a garimpeiros e lobistas que pleiteavam abrir áreas protegidas à exploração mineral. E, ao longo dos quatro anos dessa gestão, proliferaram exemplos de medidas administrativas, proposições legislativas, discursos e decisões políticas que visavam favorecer essa atividade – embora ela seja proibida em terras indígenas e unidades de conservação. Um efeito direto desse fortalecimento político foi a propagação de candidaturas ligadas à garimpagem nas eleições de 2022 e a posterior formação de uma “bancada do garimpo”.
Além dos aspectos tecnológicos, sociológicos e políticos do avanço do garimpo no Brasil, é importante destacar que o total descontrole da cadeia do ouro contribui indiscutivelmente para o aumento desse problema. Desde meados de 2013, um dispositivo legal garantia aos compradores de ouro – que, também por lei, devem ser necessariamente instituições financeiras – completa blindagem em relação às suas responsabilidades na aquisição do minério.
Trata-se da “presumida boa-fé do comprador”, que eximia os postos de compra ligados a Distribuidoras de Títulos e Valores Mobiliários (DTVM) da obrigação de verificar se a origem do ouro vendido a eles era ilegal. Em abril de 2023, o STF suspendeu os efeitos da “presumida boa-fé” e quatro meses depois, em agosto, o Banco Central incorporou essa decisão às suas normas.
Ainda assim, a compra e a venda do minério estão extremamente sujeitas a fraudes. A facilidade com que se tem “esquentado” ouro, por exemplo, é impressionante: no posto de compra, o vendedor mascara a origem ilegal do minério, declarando que a produção se deu em área com Permissão de Lavra Garimpeira (PLG) legal. E fica por isso mesmo. Parte das soluções para esse problema é infralegal, administrativa. E parte está no Projeto de Lei (PL) 3025/23, apresentado ao Congresso em junho deste ano (o PL reformula as regras do comércio e do transporte de ouro e, entre outras medidas, torna obrigatória a comprovação da origem do metal).
Há ainda aspectos econômicos envolvidos no avanço do garimpo no Brasil. Um deles é a volatilidade do preço do ouro, que vai às alturas em momentos de crise. Um exemplo nítido disso ocorreu justamente na pandemia de covid-19, quando a cotação do minério bateu recordes no mercado internacional, contribuindo para o que pesquisadores e jornalistas chamaram de “nova corrida do ouro” na Amazônia. Outro aspecto que merece atenção está ligado aos impactos, na população de menor renda, do aumento da inflação e da queda na oferta de empregos no país. Em contextos assim, a garimpagem pode parecer um caminho viável – ainda que degradante e ilegal quando a atividade é realizada em áreas protegidas – para ter acesso a alguma renda.
É muito comum deparar com verdadeiros classificados (como os de jornal) em grupos de mensagens instantâneas ou comunidades em redes sociais: homens à procura de serviço de operador de maquinário, mulheres que oferecem mão de obra para as cozinhas dos garimpos e outros mais. Esses classificados são entremeados de discursos de exaltação à coragem dos garimpeiros, que enfrentam por meses a fio a floresta, o isolamento e a malária. Por outro lado, é também comum aparecerem postagens de pessoas em busca de familiares que nunca voltaram do garimpo.
Quem ocupa a base da pirâmide do garimpo – aqueles que realmente se sujam de lama e passam meses na floresta – está sujeito aos mais diversos riscos de acidentes, proliferação de doenças etc. Além disso, com frequência essas pessoas são submetidas a condições de trabalho degradantes, muitas vezes análogas à escravidão. Isso não ameniza o fato de estarem cometendo crimes, evidentemente – conforme se viu no caso da TI Yanomami, além da exploração ilegal de ouro, garimpeiros promoveram crimes contra as comunidades locais, contra mulheres e meninas indígenas.
O que é preciso reforçar é que, embora o imaginário popular ainda se baseie na ideia de que o garimpo é algo que diz respeito apenas a garimpeiros – como uma suposta atividade artesanal e de baixo impacto –, a realidade no Brasil, há mais de uma década, é outra. E, apesar de existir o discurso de que determinados municípios amazônicos dependem economicamente dessa atividade, já se comprovou que o garimpo não promove progresso, e sim destruição. Em Jacareacanga, por exemplo, são flagrantes os estragos provocados pela atividade que acontece à margem da lei, de forma não autorizada, em terras indígenas e unidades de conservação.
*Luísa Molina é antropóloga. Nos últimos anos, dedicou-se a estudar o avanço do garimpo predatório em terras indígenas, para ajudar a combatê-lo. Organizou dois livros sobre o assunto: O Cerco do Ouro: Garimpo Ilegal, Destruição e Luta em Terras Munduruku (2021) e Terra Rasgada: Como Avança o Garimpo na Amazônia Brasileira (2023). Hoje, colabora com o Instituto Socioambiental na proteção das terras indígenas e unidades de conservação da bacia do Xingu.
Este artigo foi publicado originalmente na cartilha entregue, em maio de 2023, aos participantes do primeiro encontro do Micélio – Programa de Coformação de Jornalistas-Floresta, realizado na Reserva Extrativista do Rio Xingu, no Pará, na Amazônia brasileira. Micélio é uma iniciativa de SUMAÚMA – Jornalismo do Centro do Mundo, com o apoio da Moore Foundation e da Google News Initiative. SUMAÚMA agradece à comunidade que a acolheu.
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Fluxo de edição e estilo: Viviane Zandonadi
Direção: Eliane Brum