Jornalismo do centro do mundo

O cacique Raoni Metuktire nos Diálogos Amazônicos, encontros de movimentos sociais e da sociedade civil realizados antes da Cúpula da Amazônia. Foto: Carlos Borges/SUMAÚMA

Parecia que eu tinha dado sorte. Era final de uma manhã escaldante em Belém quando cheguei ao local da Cúpula da Amazônia, pingando suor após ter acompanhado a marcha da sociedade civil no primeiro dia do encontro de chefes de Estado. Na porta, dei de cara com o cacique Raoni. O que me pareceu uma chance de entrevistar a liderança histórica que me fizera chorar em janeiro, quando subiu a rampa do Planalto com Luiz Inácio Lula da Silva, se transformaria num dia surreal, em que eu acabei, sem querer, virando testemunha do maltrato do presidente ao nonagenário Kayapó (e pagando o almoço dele).

Fazia três anos que eu tentava entrevistar Raoni, mas era jogado de um lado para o outro por sua assessoria e já havia desistido. Quando o encontrei, acompanhado de outros quatro indígenas, fui fazer o pedido pessoalmente. Patxon Metuktire, neto e intérprete do cacique, negou, mas pediu que eu os acompanhasse: Raoni queria entrar na cúpula para falar na plenária, mas estava sem credencial. Meu crachá de jornalista, avaliou Patxon, poderia ser útil caso o ancião fosse barrado na porta do Hangar, o centro de convenções de Belém onde Lula recebia os líderes dos países amazônicos, em 8 de agosto. Na esperança eterna de uma rebarba, concordei.

Raoni foi imediatamente reconhecido pelos militares na guarita lateral do Hangar, por onde imprensa e delegações dos países amazônicos entravam na cúpula. Mandaram que seguíssemos até um segundo ponto de controle, na garagem do local, por onde as delegações acessavam a plenária. Caminhando com dificuldade, o ancião subiu uma rampa bem mais modesta, a que dava acesso à entrada, e ali ficou. A segurança, aturdida pela visita-surpresa, mandou um rádio para a organização do evento. E, enquanto isso, tratou de tietar Raoni. Ofereceu água, banheiro e uma cadeira. Um dos funcionários quis uma selfie: “Meu bisavô era índio!”.

Após alguns minutos, o secretário de Relações Político-Sociais da Secretaria-Geral da Presidência, Wagner Caetano de Oliveira, desceu para encontrar o Kayapó. Estava acompanhado do secretário de Imprensa do Planalto, José Chrispiniano, que me fuzilou com o olhar: a última coisa de que ele precisava naquele momento de potencial saia justa era um jornalista por perto. Não adiantou nada eu protestar que estava ali por acaso; a partir daquele momento, eu já havia sido “embedado” na delegação Kayapó.

Caetano explicou a Raoni como a coisa funcionaria: ele seria levado ao encontro de Lula e dos outros chefes de Estado – sem imprensa –, e os dois conversariam por cinco minutos. O cacique levantou da cadeira na mesma hora e deu uma bronca no secretário: ele não queria apenas ser recebido. Queria falar na plenária, como fizera três dias antes ao abrir os Diálogos Amazônicos, segmento da cúpula dedicado à sociedade civil. Caetano disse que iria ver o que daria para fazer.

Lula se irritou com o pedido. A cúpula já havia começado atrasada, o presidente não sabia o que Raoni diria em sua intervenção e temia algum constrangimento na frente dos outros presidentes. Naquele momento, decidiu que não receberia o Kayapó. Iniciou-se ali uma operação para tapear o cacique, que duraria mais quatro horas.

Perto de meio-dia, Caetano desceu para falar conosco (àquela altura éramos “nós”, mesmo). Disse que estava tudo atrasado, sugeriu que fôssemos almoçar enquanto os líderes discursavam na abertura e que voltássemos às 13 horas. Segundo ele, Lula receberia Raoni antes do próprio almoço e, por isso, nós não poderíamos atrasar. “E aí, como vocês são amigos, você pede pra falar na plenária.” Mas onde almoçar? Sugeri levar Raoni para a sala de imprensa, onde todos os dias era servido almoço (nunca antes na história deste país os jornalistas foram tão bem tratados). “Nãããooo, muito assédio!”, foi a resposta. Não insisti. Sugeriram que pegássemos um Uber para comer na cidade. Patxon bateu o pé: queria uma van do evento. OK, você venceu, van será. “Jornalista, você vem com a gente”, determinou. Almoçar com Raoni? Quem sou eu para negar?

Subimos na van credenciada correndo contra o tempo. Seria preciso sair, enfrentar o trânsito de Belém, comer e estar de volta pontualmente às 13 horas. Ninguém ali conhecia a cidade, exceto o motorista, que, sem saber da restrição de tempo, sugeriu o Mangal das Garças, um parque a meia hora de carro do Hangar.

Exultantes pela vitória até ali, os Kayapó precisavam enfrentar outro problema: quem vai pagar o almoço? À pergunta, em português, seguiu-se uma série de considerações em Kayapó. Entendi uma única palavra – “jornalista”.

Após 15 minutos no trânsito, mandei abortar o Mangal das Garças e arrumar qualquer lugar onde pudéssemos comer em 15 minutos e voltar. Já passava de meio-dia. O “motóra” disse que conhecia um pê-efe rápido supimpa. “Qualquer coisa, a esta altura”, falei. E foi assim que o grande Raoni Metuktire, recebido por reis e presidentes no mundo inteiro, acabou almoçando num pé-sujo de Belém, desses que servem água do filtro em garrafas de guaraná usadas. Como corretamente adivinhei, a conta dos cinco foi minha.

Na van, de volta, perguntei a Raoni o que tanto ele queria dizer a Lula. “Quero dizer a ele para trabalharmos juntos pela Amazônia”, respondeu. Se o presidente soubesse, não teria enrolado o cacique.

Chegamos ao Hangar às 13 horas e 5 minutos, dentro do que pode ser considerado pontual para padrões brasileiros. Patxon mandou avisar a Secretaria-Geral. No calor insuportável da tarde, a segurança nos encaminhou para um local refrigerado, a copa da área dos fundos do Hangar, onde o pessoal da segurança almoçava. Ali Raoni foi acomodado, com água, café e uma televisão em que podia assistir à cobertura do evento ao qual ele queria estar presente. Caetano desceu depois de um tempo para avisar aos Kayapó que Lula infelizmente já havia saído para almoçar com os líderes amazônicos. O cacique teria de esperar para ser recebido.

Por determinação da Secretaria-Geral da Presidência, Raoni esperou por Lula em uma copa do centro de convenções da Cúpula da Amazônia. Foto: Claudio Angelo

Ficamos na copa por mais de três horas. Aproveitei o privilégio para fazer a entrevista que estava esperando havia três anos. Um jornalista colombiano que se perdera no Hangar e fora parar por acaso na entrada de delegações se esgueirou para dentro da copa e conseguiu uma entrevista exclusiva (alguém deu sorte naquele dia, afinal). Agoniado, Raoni se levantou várias vezes, saiu, fumou seu cachimbo, voltou. Patxon começou a ameaçar ir embora: Raoni pegaria um avião às 17 horas e 40 minutos. E nada do tal almoço de Lula terminar.

Depois das 15 horas e 30 minutos, quando a comitiva já se preparava para partir, veio a notícia: um grupo de ministros desceria para se reunir com o cacique. O secretário-geral da Presidência, Márcio Macêdo, foi até a copa acompanhado de Sonia Guajajara (Povos Indígenas), Nísia Trindade (Saúde, que parecia tão emocionada quanto eu ao encontrar o cacique), Marina Silva (Meio Ambiente e Mudança do Clima) e do secretário-executivo de Marina, João Paulo Capobianco. Em nenhum momento o líder indígena foi convidado a subir ao salão, ou a uma antessala que fosse, onde acontecia a reunião de presidentes. Ali, no refeitório, entre azulejos, garrafas térmicas e fornos de micro-ondas, parte do primeiro escalão do governo federal recebeu a maior liderança indígena do Brasil.

Após mais de três horas de espera, o Palácio do Planalto enviou secretários e ministros para falar com Raoni. Lula não apareceu. Foto: Solange Barreira/Observatório do Clima

Macêdo pediu desculpas: Lula estava em reuniões bilaterais com outros presidentes e, afinal, não falaria com o Kayapó. Raoni reagiu com bom humor: “Da próxima vez que nos encontrarmos, vou dar um puxão de orelha nele”. Repetiu que aquela era uma agenda muito importante e que os ministros deveriam ficar firmes para acabar com o garimpo em terras indígenas e o desmatamento. E aproveitou para fazer demandas paroquiais: uma estrada para facilitar o escoamento de sementes de cumaru coletadas por uma aldeia; atenção à saúde no território Kayapó; a nomeação de um parente para a Funai (um documento que Macêdo confundiu com uma carta a Lula e se comprometeu a levar ao presidente).

Ao recusar-se à quebra de protocolo, Lula não apenas desrespeitou um ancião e destratou o aliado cuja foto adorna a capa do Flickr da Presidência da República – e está no perfil do presidente no X (Twitter). Também perdeu a chance de ter na Cúpula da Amazônia uma imagem poderosa, de um símbolo da própria Amazônia falando aos chefes de Estado da região e demonstrando que os acenos que os países do Tratado de Cooperação da Amazônia fizeram aos indígenas na declaração final da cúpula não eram apenas letras num papel. Coube ao presidente da Colômbia, Gustavo Petro, fazer o único discurso daquele dia alinhado com as necessidades de um bioma próximo ao ponto de colapso e de um planeta em emergência climática. Isolado ao dar a real para os colegas, Petro certamente teria apreciado a presença de Raoni naquele evento.

*Claudio Angelo é coordenador de Comunicação e Política Climática do Observatório do Clima e colaborador de SUMAÚMA.


Checagem: Douglas Maia
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem da página: Érica Saboya

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA