Um canto, acompanhado pelo ritmo do chacoalhar de maracás, tomou o Plenário 12 de um edifício anexo à Câmara dos Deputados assim que a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, encerrou seu discurso de abertura no início da tarde de terça-feira, 11 de abril. “É um modo da gente dizer assim [à ministra]: estamos aqui e estamos com você”, explicaria depois a SUMAÚMA Junior Xukuru – indígena do povo Xukuru que foi a Brasília assistir à reunião e que, acompanhado por Leonel Atikum, acadêmico indígena do povo Atikum (PE) na Universidade de Brasília (UnB), deu início ao ritual.
Uma solitária voz feminina, contudo, insistiu em se opor durante os dois minutos que durou a celebração. “Pela ordem, pela ordem, [o canto] não faz parte do regimento”, repetia. Era de esperar que a tentativa de interromper o ritual fosse de uma pessoa não indígena. Tratava-se, porém, da deputada federal Silvia Waiãpi (PL-AP), uma indígena ex-tenente do Exército que é apoiadora do ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro, em cujo governo trabalhou. Waiãpi também é alvo de um inquérito no Supremo Tribunal Federal, o 4.918, em que é investigada pela suspeita de incentivar os ataques golpistas de 8 de janeiro.
Era a primeira audiência de Sonia Guajajara na Câmara desde que assumiu o Ministério dos Povos Indígenas. O convite, para falar sobre os desafios de seu trabalho nos primeiros 100 dias do governo federal, foi feito pela deputada federal indígena Célia Xakriabá (PSOL-MG), parlamentar que está na linha de frente da “Bancada do Cocar” no Congresso, em Brasília, e que preside a Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais. As “onças” são as indígenas desse grupo eleitas para enfrentar “os leões” do Congresso naquele “salão verde desmatado” da Câmara – termos usados pela própria deputada do PSOL em entrevista a SUMAÚMA. A deputada indígena Juliana Cardoso (PT-SP) é outra voz que se soma à causa no Congresso.
Eleitas deputadas federais, Sonia Guajajara e Célia Xakriabá (no alto da foto), representantes da Bancada do Cocar, participam da sessão inaugural da Câmara, em 1º de fevereiro de 2023, num Congresso dominado por homens brancos. Foto: Pablo Valadares / Câmara dos Deputados
A eleição dessas representantes dos povos originários resultou de um esforço coletivo que reuniu, sob o slogan “Chamado pela Terra”, mais de 180 candidaturas indígenas. Filiada ao PSOL no estado de São Paulo, Sonia Guajajara não chegou a se sentar na cadeira de deputada – antes de tomar posse, já havia sido nomeada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva para comandar o inédito Ministério dos Povos Indígenas.
Assim, quando retomou o microfone após o canto iniciado por Junior Xukuru e Leonel Atikum, Sonia Guajajara fez questão de reconhecer a importância daquela manifestação. “Trago aqui essa reafirmação de que o aldear a política não é apenas a presença física [de indígenas nos espaços da política]. É a gente também trazer a presença da nossa cultura, dos nossos rituais, para as pessoas conhecerem de fato quem são os povos indígenas no Brasil. É também o canto, é o maracá, é a nossa voz, é a ancestralidade presente. A gente precisa que o Brasil reconheça essa diversidade de povos e culturas, e temos que começar pela casa do povo, que é aqui, é o parlamento”, disse a ministra, que foi aplaudida pela maioria dos presentes.
Exatamente um ano antes, em 12 de abril de 2022, Luiz Inácio Lula da Silva, ainda candidato, anunciou que, se eleito, criaria o Ministério dos Povos Indígenas. Ali, no Acampamento Terra Livre (ATL), em Brasília, o petista ouviu Sonia Guajajara explicar o que as lideranças indígenas tinham em mente: “Nós estamos aqui apresentando ao Brasil e ao mundo a retomada (…). É retomar o Brasil, demarcar territórios e aldear a política. Porque não é mais possível que tenhamos 513 deputados e apenas uma mulher indígena [à época, Joenia Wapichana, atual presidente da Funai]. Nós queremos alguém que retome nossa participação nos espaços de controle social para a construção de políticas públicas deste país. Nós queremos uma secretaria de saúde indígena fortalecida. Nós não aguentamos mais ver crianças sendo sugadas por dragas de garimpo ilegal”. “Aldear a política” é levar o modo de ver e pensar o mundo dos povos indígenas a posições de poder, algo que Sonia Guajajara alcançou.
Sonia Guajajara, no Acampamento Terra Livre 2022, em Brasília, anunciou que seria preciso ‘aldear a política’: na ocasião, Lula, candidato à Presidência, prometeu criar o Ministério dos Povos Indígenas. Foto: Mídia Ninja
O tema voltou, agora na fala da ministra, num dos primeiros encontros políticos em que ela deixou claro aos parlamentares o seu território. “Essa conquista histórica é fruto da luta, resistência e articulação do movimento indígena, que, nos últimos anos, vem se organizando e traçando estratégias para superar a sub-representatividade nos espaços de poder”, lembrou Sonia em sua fala introdutória na comissão da Câmara. “Os povos indígenas decidiram aldear a política para que, de fato, pudessem trazer sua forma de pensar e agir nas instâncias de tomada de decisão.”Abraçado pelo canto dos indígenas de várias etnias presentes à reunião – e por boa parte dos não indígenas que ajudaram a lotar a sala, com capacidade para 80 pessoas –, o conceito de “aldear a política” também tinha adversários ali. Travou-se, naquela tarde, um embate entre a urgência das reivindicações indígenas e o ruído com que a extrema direita procura pautar o debate público. Naquele dia, ficou evidente, na cobertura da imprensa, que a truculência ganha mais espaço do que a causa indígena. A fala transfóbica de Silvia Waiãpi, hábil no manejo da cartilha de criação de factoides dos Bolsonaro, lhe abriu manchetes em grandes veículos de comunicação. “Os senhores querem que eu aceite alguém que se autodeclara mulher sem ser mulher, [sendo] biologicamente homem. Eu sou obrigada a aceitá-lo, mas não querem me aceitar”, afirmou ela em resposta a Dorinaldo Malafaia (PDT-AP), que havia lembrado que Silvia não é reconhecida pelo povo Waiãpi como sua representante. Já o relato de Sonia Guajajara sobre o imenso desafio de erguer, desde as fundações, um ministério que só passou a existir há 100 dias e as tentativas de calar as manifestações tradicionais dos povos indígenas usando como arma o “regimento” foram quase ignorados.
‘Por que insistem em considerar terras indígenas como áreas improdutivas?’
Dez processos de demarcação de novas terras indígenas já estão finalizados e nas mãos do ministro-chefe da Casa Civil do Palácio do Planalto, Rui Costa, anunciou Sonia Guajajara à comissão. Na Casa Civil – que exerce uma espécie de coordenação do governo –, eles vão passar por análises políticas e jurídicas antes de ser colocados na mesa de Lula, para que o presidente tome sua decisão. Mas, espera a ministra, ao menos parte das novas demarcações deve ser anunciada no Acampamento Terra Livre, no fim deste mês – “O futuro indígena é hoje. Sem demarcação não há democracia!” é o slogan do evento. Quais são essas terras, porém, ainda é um segredo bem guardado no Ministério dos Povos Indígenas (MPI). A ideia, segundo um integrante da pasta disse a SUMAÚMA, é evitar que a bancada ruralista, a mais coesa e influente do Congresso Nacional, “se articule” contra as demarcações.
Isso é algo que, na prática, já acontece. O PP, partido de Arthur Lira, o poderoso presidente da Câmara dos Deputados e ele mesmo um ruralista, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que retirasse do MPI a competência de demarcar novas terras indígenas. Até 2022, essa atribuição era do Ministério da Justiça, mas mudou – junto com a Funai – para as mãos do MPI, criado por uma medida provisória de Lula, a 1.154, que o Congresso ainda precisa aprovar. A ação movida pelo PP terá como relator o ministro Nunes Marques, alçado ao STF por Bolsonaro. Marques já votou contra os povos indígenas em outro processo fundamental, o do marco temporal, em setembro de 2021, antes que fosse retirado da pauta.
“A demarcação das terras indígenas é a reivindicação primordial do movimento indígena e, consequentemente, a demanda mais urgente para o nosso ministério”, explicou Sonia à comissão da Câmara. “Onde tem a presença indígena, independentemente do território estar demarcado ou não, há garantia de água limpa, de alimentação sem veneno, de biodiversidade protegida. Nós, indígenas, somos apenas 5% da população mundial e protegemos 80% da biodiversidade do mundo.”
A ministra, no entanto, deixou muito claro o tamanho do desafio com um orçamento ínfimo. “Para este ano a gente tem somente 50 milhões de reais para garantir o funcionamento da nossa estrutura. O orçamento que a gente tem hoje [para seguir] trabalhando é, juntamente com o da Funai, de 640 milhões de reais para todo o Brasil. E, quando você tira todos os gastos de funcionamento da Funai, sobram apenas, em média, 200 milhões de reais para garantir atividades finalísticas”, afirmou Sonia. De resto, há, por ora, apenas perspectivas. “[O MPI] está trabalhando na interface, inicialmente, com mais 30 ministérios, para que a gente possa garantir a inclusão das ações para os povos indígenas ainda neste ano”, disse.
Para ter uma ideia de como o orçamento do Ministério dos Povos Indígenas é ínfimo, a Agência Nacional de Mineração tem uma previsão orçamentária de mais de 1 bilhão de reais em 2023 – cinco vezes mais que os 200 milhões a que se referiu Sonia –, o Ministério das Cidades tem 20 bilhões de reais à disposição (100 vezes mais) e o da Defesa, 122 bilhões de reais (inacreditáveis 610 vezes mais).
Apresentada a um debate fundamental para o futuro do país, a oposição preferiu fabricar memes. Silvia Waiãpi tentou atrelar a cultura do povo Guajajara ao tráfico de maconha. Também bolsonarista, o deputado federal Paulo Fernando Melo da Costa (Republicanos-DF), que gosta de se apresentar como “advogado, jornalista e professor”, sugeriu que indígenas, indistintamente, “matam crianças que nascem com deficiências”. Há anos que a extrema direita brasileira usa esse fato, restrito à cultura de um pequeno número de povos indígenas, para “fazer crer que o infanticídio é comum entre os indígenas”, segundo uma ação judicial movida pelo Ministério Público Federal de Roraima contra organizações ultraconservadoras ligadas à ex-ministra Damares Alves. Elas lançaram, em 2018, um filme mentiroso sobre o assunto, depois retirado do ar pela Justiça. Como Paulo Fernando, a hoje senadora Damares é filiada ao Republicanos do DF. Ao tornar simplório um debate tão complexo e delicado, a extrema direita busca, no limite, criminalizar toda a cultura tradicional dos povos indígenas como estratégia para avançar sobre suas terras.
Já Marcos Antonio Pereira Gomes, conhecido pelo nome de urna Zé Trovão, deputado federal pelo PL de Santa Catarina, traçou um tortuoso raciocínio em que a afinidade da população japonesa com a tecnologia é justificativa para a aprovação de um projeto de lei que “dá aos indígenas o direito de trabalhar suas terras caso queiram”. “Existe uma questão colocada de que a tecnologia vai tirar a cultura indígena. Se fosse assim, os japoneses teriam perdido a sua cultura. Eles são tecnológicos e mantêm a sua cultura viva”, argumentou Zé Trovão. O que o deputado – que chegou a ser preso em 2021 após fazer ameaças à democracia brasileira – quer com isso é liberar a mineração e a monocultura de commodities como a soja em terras indígenas. Afinal, segundo ele mesmo, “problemas se resolvem com dinheiro”.
“Por que vocês insistem em considerar as terras indígenas como áreas improdutivas se exatamente esses territórios garantem a floresta em pé e o ar que chega aqui para todo mundo respirar? Gente, são essas áreas que fazem com que o Brasil não seja ainda um grande deserto verde. Não sou contra a produção de alimentos, de forma alguma. Agora, é preciso uma mudança urgente na produção e nos sistemas alimentares. Porque, se continuar nesse ritmo de se insistir nas monoculturas, o planeta não aguentará mais 50 anos”, rebateu a ministra. “Quem dera tudo se comprasse com dinheiro – cadê o deputado Zé Trovão?”, perguntou, procurando-o na plateia.
Mas o político bolsonarista já havia saído da sala. Estava alguns metros adiante, posando para selfies, no longo corredor da Câmara repleto de plenários em que as comissões temáticas se reúnem. Em outra daquelas salas, superlotada, o ministro da Justiça, Flávio Dino, tentava se fazer ouvir pela Comissão de Segurança e Justiça, mas a reunião foi encerrada após uma sucessão de xingamentos entre parlamentares. Entre os deputados presentes ao arranca-rabo, estava Zé Trovão. O tema move paixões da extrema direita: posse e porte de armas.
‘Início da reparação histórica’
Mais tarde, já perto do fim da reunião, Sonia Guajajara se mostrou – apesar de tudo – satisfeita. “Eu quero dizer para vocês que eu gostei de vir para cá [para a Câmara]. Eu estou gostando muito do meu trabalho no ministério. Os desafios são grandes, mas também as oportunidades são muitas: de articular, dialogar, conhecer, conscientizar, sensibilizar”, afirmou. “A gente tinha essa estratégia de aldear a política, e o aldear a política é a gente conseguir chegar em todos os espaços. Estamos vivendo um momento que marca o início dessa reparação histórica, é um novo momento na história do Brasil, na história da política brasileira, com a presença indígena. Eu lamento muito ter que escutar que muitas pessoas torcem para dar errado.”
Célia Xakriabá (Psol-MG), deputada federal que está na linha de frente da Bancada do Cocar na Câmara e preside a Comissão da Amazônia e dos Povos Originários e Tradicionais. Foto: Vinicius Loures/Câmara dos Deputados
A deputada Célia Xakriabá, uma das aliadas mais próximas de Sonia Guajajara, reforça: “Nunca se viu a presença de uma ministra [indígena] nem uma comissão ser presidida por [uma mulher] indígena. Quando se trata dos povos originários, dos povos de comunidades tradicionais da Amazônia, das águas e da terra, não se trata exatamente de uma questão progressista. Independentemente de ideologia, independentemente de partido, estamos aqui para pensar o que é melhor para o planeta. Se inaugura uma discussão sobre a política indigenista, mas a partir da perspectiva dos povos indígenas. Pensamos também que é importante discutir economia a partir de uma visão da bioeconomia relacionada aos modos de vida indígena”.
Não será fácil. E elas sabem disso, porque já nasceram na luta. A estratégia da extrema direita, bem mais numerosa no parlamento, mostrou logo neste primeiro evento que segue a mesma: impedir o debate e desviar a cobertura da imprensa com a criação de factoides. Os alertas da ciência sobre a emergência climática, porém, demonstram que só haverá chance para as novas gerações se as forças progressistas criarem condições para que o trabalho de pessoas como Sonia Guajajara e Célia Xakriabá possa frutificar na terra degradada do Congresso.
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: James Young
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga