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O agricultor e pescador Ediel Maciel da Silva fala do desaparecimento de Geiel Vidinha da Silva, de 16 anos: ‘Nesse buraco em forma de coração, está enterrado o meu filho’

No último degrau de uma escada de madeira à beira­ do barranco com risco de desabamento, Ediel Maciel da Silva, de 42 anos, olha para a cratera que sugou a Vila do Arumã, numa das curvas do rio Purus, município de Beruri, no interior do estado do Amazonas. Parecia ainda não acreditar: a erosão no dia 30 de setembro levou tudo para debaixo da lama e da água em minutos. Levou até seu filho Geiel Vidinha da Silva. Ele tinha 16 anos. A escada foi a única lembrança que sobrou da moradia em que Ediel vivia com oito filhos e a companheira, Ezivania Aires, de 40 anos. A tragédia é sombra persistente na vida deles. Apenas dois anos atrás, em 2021, o caçula da família, um bebê de 2 anos, morreu durante a cheia, no igarapé que passava atrás da casa de Ediel. A família Silva, no Amazonas, está entre os milhares de vítimas da crise climática, que agravou uma situação de insegurança conhecida das autoridades mas não dos moradores. Perdeu um filho pela cheia, outro pela seca.

Infográfico: Rodolfo Almeida

O rio, que dá vida à comunidade do Arumã e levou dois filhos de Ediel, é também vítima dos extremos climáticos. Na atual estiagem, o Purus, um dos 25 maiores rios do mundo, registra a quinta maior seca desde 1967, quando seu volume de água passou a ser medido pelo Serviço Geológico do Brasil. No ano passado, o Purus teve sua pior seca e, em abril de 2023, a segunda maior cheia, só menor que a ocorrida em 2015. Beruri está entre os 62 municípios em estado de emergência no Amazonas em decorrência da severa estiagem. Só na calha do Purus são mais de 140 mil pessoas atingidas, quase sete vezes a população de Beruri, estimada em 20.718 habitantes, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022.

“Aí, nesse buraco em forma de coração, está enterrado o meu filho… Estou vendo aquele desespero todo na minha mente”, disse Ediel. Era a primeira vez que ele voltava ao local do acidente.

Ediel volta ao local do acidente e vê a destruição. Depois do desabamento, ele conduziu mais de 200 pessoas floresta adentro em busca de um lugar seguro para se abrigar

A tragédia na Vila do Arumã matou duas pessoas e deixou três desaparecidas – que os familiares consideram mortas. Destruiu cerca de 45 casas, um posto de saúde, uma escola e três igrejas na vila formada por Ribeirinhos que vivem de pesca e agricultura. Outras 30 moradias estão em risco de desabar. São cerca de 300 desabrigados. As defesas civis estadual e municipal não informaram números exatos sobre moradias da vila, nem sobre os atingidos.

Em um relatório do CPRM (atual Serviço Geológico do Brasil) de 2014, o órgão alertou sobre o risco na região. O documento está disponível na internet desde então. Mas os moradores só tomaram conhecimento do perigo que corriam pelo noticiário da TV, dias após terem vidas e casas destruídas. Para os sobreviventes, ao contrário do que não fizeram órgãos e gestores públicos, a natureza deu vários sinais de que o Arumã ia ceder sobre o Purus. Dias antes do desabamento, o chão de algumas casas, do posto e da escola rachou. Um poço desativado, sem água e com a bomba emperrada, voltou a funcionar.

“Valmir [um vizinho] me disse: ‘Essa bomba aí estava entupida, eu puxei e veio’. As janelas do templo estavam apertadas pra fechar. Na casa do Rei, do Nivaldo, do Mauricio [outros moradores] também. O colégio e o posto tinham partido o chão. A terra estava fazendo assim [fez um gesto de pirâmide invertida]”, conta Ediel, em roda de conversa por volta das 20 horas do dia 11 de outubro, a quatro irmãos da família Freitas, num flutuante a poucos metros do que sobrou da vila.

O irmão mais velho da família, Eliezer Freitas, de 30 anos, concorda: “A terra estava encolhendo para baixo. Eram tantos sinais e ninguém se tocou disso”. Os irmãos Freitas, cujas casas ocupavam uma rua quase inteira do Arumã, agora passam a noite numa pequena embarcação de madeira. Dentro, redes penduradas. É tudo o que têm para recomeçar. “Se chegasse alguém que entendesse disso e dissesse ‘Sai daí’… Mas a gente nunca imaginava. Por isso, Deus livrou a gente, que estava como inocente”, desabafou Ediel.

O desabamento engoliu 47 casas, três igrejas, um posto de saúde e uma escola, além de deixar duas pessoas mortas e três desaparecidas no rio Purus

Eram 15 horas de sábado, dia 30 de setembro, quando os sinais da natureza ficaram mais evidentes. Na ribanceira, a terra começou a cair. Acostumados ao fenômeno de terras caídas (erosão provocada pelo movimento fluvial nos barrancos), os moradores interpretaram o evento como normal. Correram para filmar com o celular. Entre eles, Geiel, o filho de Ediel. O adolescente não tinha telefone, nem era acostumado com tecnologia. Preferia o roçado e o futebol. Mas, há um mês, os pais colocaram internet de melhor velocidade e Geiel começou a usar o aparelho da mãe.

Como de costume, às 18 horas a vila se agitava com crianças brincando nas ruas, pescadores chegando do rio e pessoas conversando em frente às casas. Nesse horário, a pescadora Ketla Paiva Moura, de 30 anos, já deveria estar numa área mais afastada do local do acidente, onde mora em um flutuante, mas permaneceu na casa do pai. Os filhos, Kezia Moura Lima, de 16 anos, e Allyson Moura Lima, de 7, ajudavam o avô a enrolar cordas que ele vendia no flutuante dele. Na parte de baixo da ribanceira, Ketla e os filhos não viram o movimento dos moradores quando o barranco começou a ceder.

No flutuante próximo do pai de Ketla, Maria do Socorro Barros da Silva, de 57 anos, fritava frango para jantar com o marido, Maurício Barros. Já os irmãos Elizeu e Eliezer Freitas voltavam de um dia inteiro de pesca com o suficiente para a alimentação e venda. Estimavam lucro de pelo menos 1 mil reais e também ignoravam que a terra havia cedido mais cedo.

Moradores se acumularam na frente do barranco para ver o que ocorria. A primeira parte a cair, no ponto mais baixo da ribanceira, foi vista por Ediel. Deu tempo de o pescador tirar às pressas os pais dele do flutuante em que moravam. Mas no pôr do sol a terra roncou.

Uma parte maior da vila cedeu de uma só vez e formou uma grande onda no trecho do Purus em frente ao Arumã. Os moradores contam que ela tinha de 5 a 7 metros. Os primeiros atingidos foram os flutuantes da frente. Foi nessa hora que o filho de Ediel correu para filmar. Vizinhos relataram ao pai que viram o chão rachar e a parte da frente, onde estava Geiel, vir abaixo numa altura estimada em 20 metros.

Sem saber o que se passava com o filho, Ediel ouviu o estrondo e assistiu ao barranco desabar. Correu pelo terreno ao lado da área que afundou, caminho de costume quando chegava à vila pelo rio. Avisou familiares e vizinhos. No trajeto, viu o filho de 7 anos de Elizeu, em desespero, orando de joelhos e mãos para o céu, acompanhado de um pastor e outros evangélicos. Gritou: “Não é hora mais de orar, é hora de correr”. Depois, Eliezer diria: “Os pastores fizeram um clamor monstro lá. Mas podia ser o cara maior de oração que Deus não ia atender ninguém ali”.

Ediel conta que, por cerca de uma hora, conduziu mais de 200 pessoas pela floresta adentro. A caminhada até o terreno onde cultiva frutas e verduras costuma durar 25 minutos. A mata fechada dificultava a passagem e havia muitas crianças e pessoas velhas com medo de que a terra as engolisse.

A natureza deu sinais de que o Arumã ia ceder sobre o Purus e um relatório do atual Serviço Geológico do Brasil, de 2014, falava dos riscos. Os moradores, porém, não foram avisados

No flutuante em frente à vila, quando a pescadora Ketla se arrumava com os dois filhos para pegar a canoa e voltar para casa, a força da água a derrubou no rio e levou os dois filhos para lados diferentes. Ketla sentiu que perdia as forças ao ser sugada por um redemoinho para o fundo do rio. Sentia também que pedaços do flutuante batiam em várias partes do corpo e engolia água e lama. Ela conta que só resistiu porque seu único pensamento era salvar os filhos. “A onda era forte. Pensei que não ia aguentar. Só consegui subir porque meu pensamento era meus dois amores. Eu precisava encontrá-los”, diz com fala pausada, as palavras molhadas por lágrimas, numa velocidade inversa à rapidez dos acontecimentos do dia 30.

A grande onda transbordou para os lados e atingiu os outros flutuantes. No de Socorro e Maurício, derrubou móveis, prateleiras e também o casal. A casa foi empurrada para cima da terra, numa altura que só chegaria após a cheia. Momentos depois, o flutuante foi jogado para baixo da ribanceira pela segunda onda. “A gente via aquela grande onda vindo. Parecia que ia nos engolir, entrava no flutuante e nos jogava. Caía tudo, de todos os lados. Um filme de terror”, relembra Socorro, passando as mãos na testa, de sobrancelhas franzidas e olhos fixos no chão da cozinha.

Os irmãos Freitas se preparavam para ancorar as canoas quando a onda os alcançou. O local ficava a metros da erosão. Quando a onda se voltava para a terra, revelava um pedral no rio, que só é avistado nas piores secas. “Era uma onda que eu nunca tinha visto. Acho que uns 5, 6 metros de altura. Parecia um negócio vivo, balançando e crescendo”, conta Elizeu.

Ele tentou remar, mas percebeu que seria em vão. Foi então jogado na terra e correu para não voltar com o movimento da água. De lá, viu o Arumã desabar. “Fiquei da terra firme vendo tudo sem saber como estava a minha família. Vi o paredão cair, a cena toda. Sumiram as casas e estrondava. Me desesperei. Achava que tinha acabado tudo.”

O irmão dele, Eliezer, estava em outra canoa com o filho de 4 anos. “Eu agarrei nas mãos do meu menorzinho. Disse: ‘Meu Deus do céu, eu não vou soltar, não. Vai morrer nós dois’. A onda vinha, batia no pedral e acabava a força dela. Passava mais fraca por nós e espalhava.”

Quando o movimento violento do rio desacelerou, Eliezer ouviu a voz de uma mulher gritando: “Meu filho!”. Era Ketla, agarrada a um pedaço de madeira. “Perguntamos se ela queria ir para a beira, e ela disse: ‘Quero que você ache meu filho’. Aquele negócio tomou o filho da mão dela. A outra filha tinha sumido também. Não tinha como fazer nada, e nós doido para saber da nossa família, se tinha morrido também”, relembra.

Ketla só deixaria o rio com a ajuda do pai de Ediel depois que o corpo do filho boiou próximo de onde a mãe o aguardava. O corpo da filha de 16 anos foi encontrado pelos bombeiros dois dias depois. Kezia e Allyson foram enterrados no cemitério da vila.

A agricultora e pescadora Maria Perpétua Nazaré Laborda, tia-avó das crianças que morreram no acidente: ‘A gente olha aí para baixo e é só solidão’

Enquanto ela ainda estava no rio, os irmãos Freitas subiram a ribanceira pelo mesmo lado que Ediel. “Quando fui andando, vi que a casa não estava mais lá. E o terror acontecendo. A terra caindo. Fiquei com pena quando vi o colégio, a igreja católica, que era toda enfeitada, sumindo”, lembra Eliezer. Agarrado ao filho, ele disse que doía ver a casa da mãe, recém-pintada por ela, engolida pela lama. Na dele, onde “nada faltava”, a família aguardava acabar o gás do fogão velho para estrear o novo. Perderam tudo para o desastre. Quando chegou ao terreno de Ediel, contou, chorou com alívio ao abraçar os outros filhos e a mulher.

Elizeu passou mal no caminho, o corpo tremia e o ar faltava. “Eu tentando controlar aquela canseira e aquela perturbação toda na mente. Aquele choro das pessoas, os estrondos. Foi a noite toda perturbando o ouvido. De vez em quando, a gente lembra e vem aquela cena de tudo acontecendo. Aquela gritaria de gente.” Ele disse que, aos poucos, chegou ao lugar em que encontrou a mulher, filhos, irmãos e pais.

Na trilha pela qual Ediel conduzia os moradores com medo da morte, as pessoas amparavam-se umas às outras, choravam e gritavam orações pedindo piedade divina. A única alternativa para matar a sede no trajeto era um garrafão sujo de diesel, que foi usado para transportar a água da cacimba (buraco cavado na terra até encontrar água para consumo) para um barracão que só tinha chão e cobertura. A tampa virou copo. Ediel conta que as mães oravam e davam de beber aos filhos.

Os primeiros socorros vindos de Beruri, a cinco horas da comunidade por causa da vazante, só chegaram de madrugada. Sem estrutura, o município precisou da ajuda de um empresário que cedeu embarcações e funcionários para apoiar a comunidade. Ninguém queria deixar o local com medo de a terra continuar a cair.

Além dos filhos de Ketla e do filho de Ediel, a Vila do Arumã perdeu o padeiro Raimundo Cordeiro. Ele deixou a casa para ver o barranco cair. Antes, tirou da beirada dois netos. Um deles, o filho de Elizeu que ajoelhou para orar na hora do acidente. O menino relatou ao pai que viu quando a terra levou o avô.

A comunidade também perdeu Raimundo Furtado da Silva. Anos atrás ele tinha sido picado por uma cobra e perdera a perna. Vivia só. “Ele era deficiente. Eu não lembrei. Ninguém lembrou. Se tivesse pensado, teria carregado ele”, lamenta Ediel.

A correnteza levou pedaços de madeira, placas solares e outros objetos e partes de casas que podem ser vistas a até uma hora de distância do local da tragédia

Depois do estrondo, o silêncio

Quem ficou no Arumã convive com silêncio e tristeza após a vila ser engolida. Parte das famílias foi levada para Beruri, onde se abrigam em casa de parentes. Outros preferiram ficar em comunidades próximas ou flutuantes, também de familiares. Falta água potável. A lavagem de objetos, roupas e banhos é feita à margem do rio em estiagem, com riscos para a saúde. Quem pode compra água mineral para beber trazida de Beruri.

No trajeto entre a sede urbana da cidade e a vila, a fumaça de queimadas domina a paisagem. Os vestígios da vila aparecem no Purus a uma hora do local de origem. Objetos, pedaços de madeira, placas solares e outras partes das casas são carregados pela correnteza ou estão abandonados na margem.

A cratera que engoliu a vila impressiona de todos os ângulos. A reportagem identificou um curso de água limpa saindo de vários pontos do terreno ao lado de onde ocorreu a erosão em deslocamento para o Purus. Dentro da cratera, dois cursos de água também estão visíveis. Os moradores desconfiam que lagos que ficam atrás do terreno vazaram e ensoparam sua base, provocando o acidente.

No caminho que os irmãos Freitas e Ediel percorreram no dia do acidente, o terreno apresenta rachaduras em vários pontos. Segundo os Ribeirinhos, as marcas estão lá há anos. Na vila, parte das casas que não desabaram está com tudo dentro. Outras, sem móveis. Sandálias de crianças, livros caídos, pedaços de brinquedos e roupas ficaram dentro e fora das moradias. Na área de banho e de lavar roupa externa de uma delas, a impressão é que tudo foi deixado às pressas.

Acima, à esquerda, vestígios da destruição na Vila do Arumã. À direita, animais abandonados pelas vítimas que tiveram de se deslocar após o desabamento

Porcos e galinhas caminhavam por debaixo das palafitas. Gatos e cachorros também. Pareciam ter fome. Os cães abandonados na vila corriam assustados diante de qualquer tentativa de aproximação. O cachorro da família de Ediel acompanhou de perto o filho dele, Abner, de 10 anos, e conseguiu sair da área de risco abandonada.

O menino é uma expressão da conexão dos moradores com a Vila do Arumã e o rio. Em cada trecho do deslocamento entre Beruri e a vila, apontava as diferenças geográficas e o nome das comunidades. Ao chegar ao Arumã, percorreu as ruas que sobraram, as casas abandonadas e catou as baladeiras (estilingues) dos amigos. “Eles não vêm aqui. Vou levar para eles.” Em Beruri, após o acidente, o pai conta que o menino Abner se escondia para chorar.

Na parte de trás da rua principal da vila restou uma grande e alta mesa de madeira debaixo de uma árvore, cercada por casas coloridas e enfeitadas com vasos com plantas e flores. Ediel conta que era comum a alimentação compartilhada nos mesões. O banquete era preparado com alimentos da terra do Arumã e do rio Purus. “A essa hora isso aqui era só vida e gente alegre. Agora, essa tristeza”, resume o pescador.

A pescadora aposentada Maria Perpétua Laborda, tia-avó das crianças que morreram no acidente, foi a única que ficou na comunidade entre a Vila do Arumã e o cemitério. Desse ponto do rio, trabalha fazendo medição para o Serviço Geológico do Brasil, que a cada três meses, segundo ela, coleta os dados captados da subida e descida do Purus. Kezia, a adolescente que perdeu a vida, a ajudava. As duas nunca souberam dos riscos. “Uma tristeza, uma saudade tão grandes. Agora, a gente olha aí para baixo e é só solidão”, disse Maria Perpétua.

Para ela, a tragédia é resultado de mudanças na natureza. Para Maria Perpétua, o calor está quase insuportável e a fumaça piora o clima. “A gente é que não sabe decifrar. Alguma coisa tem. Às vezes, a terra enfraquece. Se for como vai, daqui para frente é cada vez pior. Pode não acabar a nossa região, mas vai ficando mais difícil. O povo que precisa viver da agricultura, da pesca, sofre mais”, concluiu.

Mastigando o pão como se fosse um ato obrigatório e automático, o carpinteiro Edclei da Silva Carneiro, de 30 anos, tomava café na cozinha do flutuante de Socorro e Maurício e se preparava para retomar a rotina de trabalho 12 dias após perder o pai, que era, segundo os moradores, o melhor padeiro da região. Edclei se emociona ao lembrar e diz, de cabeça baixa: “Era um exemplo de pai. A terra pegou ele de surpresa”.

O marceneiro Edclei da Silva Carneiro se emociona ao lembrar do pai, desaparecido. Raimundo Cordeiro Carneiro era considerado ‘o melhor padeiro da região’

As autoridades já sabiam

O Purus é considerado um rio jovem e em formação. As margens e o curso em curvas apresentam variações ano a ano. Terras caídas, várzeas férteis, lagos e pesca farta e diversificada são características do curso desse rio de águas barrentas. O escoamento é um problema para os Ribeirinhos, na seca e na cheia. “Um mosaico de comunidades Indígenas e unidades de conservação garantem a vegetação nativa e os serviços ecológicos no Purus”, explica o coordenador do Programa de Pesquisa em Biodiversidade do Sudoeste da Amazônia da Universidade Federal do Amazona (Ufam), o biólogo e doutor em Física Ambiental Marcelo dos Anjos.

Na vazante e nas enchentes, o Purus seca e se recupera com rapidez. Enquanto a média de 10 centímetros de descida diárias do rio Negro impressiona pelo cenário que provoca na área ribeirinha de Manaus na maior seca já registrada, no Purus a média chegou a 40 centímetros em alguns períodos nessa vazante. Nos últimos dias, desceu 12 centímetros aproximadamente.

Em todo o Amazonas, o Serviço Geológico do Brasil aponta haver 361 áreas de risco para a vida humana.

Em Beruri, nove setores são classificados como de “alto a muito alto risco”. A Vila de Arumã é um deles. Já em 2014, um relatório indicou risco de soterramento de flutuantes na ribanceira e orientou realocação das moradias próximas às encostas, na área onde morreram os filhos de Ketla e de Ediel. O Serviço Geológico do Brasil recomendou ao representante da gestão municipal revisões constantes no local, o que não ocorreu nos nove anos seguintes que antecederam um desastre superior às previsões do relatório.

Vista aérea de Beruri, que sofre com a severa estiagem e a fumaça de queimadas ilegais na floresta. Parte das famílias desabrigadas do Arumã está agora na cidade

Entre as medidas que ficaram no papel estão obras de estabilização do terreno, monitoramento das erosões, reflorestamento das margens para estabilização das encostas e visita técnica no período da vazante do rio Purus. No relatório do CPRM (atual Serviço Geológico do Brasil), os desenhos do acidente foram traçados: a base da vila estava em terreno inclinado com 30 metros de altura na seca sobre uma base argilosa, sujeita ao fenômeno das terras caídas e localizada próxima a uma curva do rio. “A água se concentra no meio da cicatriz em episódios de chuva. Há risco de desabamento e soterramento de flutuantes próximo ao talude (terreno inclinado)”, diz trecho do documento.

Depois do acidente e das mortes, o relatório veio à tona na imprensa. A atual gestão de Beruri limitou-se a dizer que não foi informada pela administração anterior. Procurada pela reportagem de SUMAÚMA, não respondeu até o fechamento desta reportagem. O governador do Amazonas, Wilson Lima (União Brasil), foi à sede de Beruri cinco dias após o acidente com uma comitiva de deputados. As imagens foram expostas nas redes sociais com palavras de solidariedade às famílias. No dia 18 de outubro, procurado por SUMAÚMA, Wilson Lima disse que as buscas pelos três desaparecidos foram suspensas porque a base do desabamento tinha 10 metros de profundidade e era composta por barro mole. “Uma semana depois, a água tomou conta. Era inviável continuar lá. A gente cogitou levar uma retroescavadeira, mas seria ineficiente. Imagina 10 metros para baixo de barro com água”, alegou.

Segundo o governador, as famílias receberam kits de higiene, dois meses de benefícios estaduais e cestas básicas. Ele prometeu realizar uma audiência pública para que os moradores decidam se querem reconstruir a vila em outra área da região ou se preferem um bônus-moradia no valor de 50 mil reais. A data da audiência ainda não foi marcada.

Moradores ouvidos pela reportagem dizem que receberam atenção e promessas do governador no dia da visita à cidade, mas até agora a ajuda veio apenas da própria população de Beruri e das igrejas. Eles se queixam de que nenhuma autoridade política nem o Ministério Público os procurou para apoiá-los na busca de reparação de seus direitos. A Defensoria Pública do Estado do Amazonas afirma ter solicitado à Prefeitura de Beruri “uma série de informações e pedidos de providências, em busca de soluções extrajudiciais para o caso”. No final de novembro, planeja fazer uma nova visita à comunidade afetada “para verificar quais medidas já foram implementadas por parte do município” e “avaliar a necessidade de adoção de medida judicial”. A reportagem também procurou o Ministério Público do Amazonas, que não respondeu até o fechamento desta edição.

Ao que tudo indica, a localização de risco junto a um rio jovem foi agravada pelo crescente desmatamento e pelos fogos criminosos em toda a região e finalmente pela seca extrema, resultado da crise climática somada ao El Niño. Para o pesquisador da Ufam, porém, o que mais fragiliza as vidas na Amazônia não são os processos naturais nem os fenômenos climáticos que os potencializam, mas a falta de políticas públicas que respeitem o meio ambiente e adequem a vida humana à região. No caso específico da Vila do Arumã, segundo ele, é flagrante a necessidade de um uso ordenado da terra e planos diretores para se estabelecer município e vilas. “A falta de orientação para o ordenamento territorial junto com políticas de uso e ocupação do solo leva a essas catástrofes que, a meu ver, são obviamente esperadas. A ciência sabe disso. O que falta é uma interlocução entre a ciência e agentes públicos para que estas pautas não se tornem importantes apenas no momento de cenário de mitigação. As coisas mudam de cenário quando a perspectiva de planejamento é feita de maneira profilática e não a posteriori”, analisa. “Esse movimento das águas subterrâneas é natural. Agora, quando se perde vegetação, as raízes são como vergalhões em um muro. E um muro sem vergalhões é instável. Da mesma forma, áreas desflorestadas sem raízes no subsolo não conseguem manter a integridade do solo deixando-o mais suscetível à saturação de água, já que as florestas acabam, a grosso modo, chupando essa água dos terrenos encharcados e também mantendo-os úmidos em períodos de grande estiagem.”

Já engolidos pela terra e pelo descaso, os moradores temem agora perder seu modo de vida. É como diz Eliezer: “Eu posso morar no lugar mais rico do mundo, mais bonito, mas o melhor lugar era ali, queria que voltasse tudo de novo. Estou pedindo a Deus que nos mostre onde a gente vai ficar bem”.



CRISE CLIMÁTICA TORNA MAIS INTENSO O FENÔMENO DE ‘TERRAS CAÍDAS’

Desmoronamentos são recorrentes nas encostas dos chamados rios de água branca. É o caso do rio Purus, que banha a Vila do Arumã

Jaqueline Sordi

Erosões nas margens de rios amazônicos, conhecidas popularmente como o fenômeno das “terras caídas”, são comuns nas encostas de muitos cursos de água que banham a maior floresta tropical do mundo. No entanto, elas estão se tornando cada vez mais frequentes, intensas e letais por causa das mudanças climáticas, segundo especialistas. Foi o caso do desabamento de terra que fez a Vila do Arumã sumir do mapa.

O geógrafo José Alberto Lima de Carvalho, professor do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), explica que esse fenômeno, comum na Amazônia, pode ser caracterizado por desabamentos, deslizamentos e desmoronamentos de terra e costuma acontecer principalmente nas encostas dos chamados rios de água branca, que têm entre as principais características a alta instabilidade dos seus leitos, ou seja, o tipo de solo é frágil. É o caso do rio Purus. “São regiões cujas margens são formadas por sedimentos novos, com baixo grau de coesão. Por isso, elas estão mais suscetíveis à ação de outros agentes, como a força das águas e da gravidade”, afirma o professor. Em períodos de cheia, o aumento do nível dos rios faz com que o solo dessas localidades fique extremamente encharcado. No entanto, quando chega a estiagem e o nível dos rios diminui, a parte de cima seca, mas a parte de baixo permanece com água retida, deixando a terra barrosa, instável. Com a pressão do curso de água e da gravidade, esse solo seco da parte de cima acaba sendo puxado para baixo, levando junto tudo o que tem ao redor. Quanto mais rápida a perda de volume de água no rio (a vazão), maior é a probabilidade de ocorrer esse fenômeno. “Quanto mais alto for o barranco e quanto maior a seca do rio, maior a força da gravidade exercida. Uma seca extrema como a de agora intensifica ainda mais esses desabamentos porque faz com que a vazão do rio ocorra de forma mais rápida, deixando o solo com maior pressão ainda. Estamos vendo vários fenômenos fortes de terras caídas nas últimas semanas, e não temos dúvida de que as mudanças climáticas têm relação direta com esse cenário”, diz Carvalho.

Atualmente, a região amazônica vive um dos períodos de estiagem mais severos já registrados pelas réguas oficiais, e é aí que a assinatura das mudanças climáticas se faz mais evidente. Para o climatologista Carlos Nobre, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), não há dúvida de que a atual seca na Amazônia deve ser considerada um evento climático extremo, e que este é diretamente influenciado pelo aquecimento do planeta. De acordo com especialistas, 2023 está se configurando como um dos anos mais – senão o mais – quentes já registrados. “Os meses seguidos de temperaturas acima da média têm elevado o grau de evaporação dos rios e lagos, alguns deles com taxa de evaporação até três vezes acima do normal. Além disso, com o calor intenso, o solo das florestas perde muita água, diminuindo a quantidade de água que corre para os rios. Isso colabora muito com a estiagem”, explica.

Somado a isso, o mundo está sob efeito do El Niño, fenômeno que envolve o aquecimento do oceano Pacífico Tropical e o comportamento dos ventos, alterando os padrões de chuva em várias regiões do planeta. Especificamente no Brasil, torna as precipitações mais frequentes e intensas na região Sul, e costuma provocar chuvas abaixo da média na região da Amazônia. O aquecimento da Terra influencia diretamente na intensidade do El Niño, porque quanto mais quentes as águas oceânicas, mais forte se torna o fenômeno climático. Neste ano, as águas do oceano Pacífico Tropical estão mais elevadas que a média, se encaminhando também para um recorde histórico. “Ou seja, se em 2015 e 2016 tivemos o El Niño mais forte já registrado, tudo indica que neste ano esse recorde será superado”, afirma Nobre.

E não para por aí. O aquecimento do planeta está atingindo também o oceano Atlântico Tropical Norte, cujas altas temperaturas registradas em suas águas em meses recentes estão provocando uma diminuição ainda maior das precipitações na maior floresta tropical do mundo. Todo esse complexo cenário está influenciando a seca extrema da Amazônia. Não podemos, porém, esquecer um terceiro e importante fator, que é o desmatamento. Entre 2015 e 2022 foram mais de 74 mil quilômetros quadrados de floresta desmatada na Amazônia. “Se virmos os dados desde 2015, perceberemos que o desmatamento aumentou muito nos últimos anos. Entre 2019 e 2022 ele explodiu”, diz Nobre. Além de contribuir para o aumento das emissões de gases de efeito estufa, o desmatamento da Amazônia agrava a seca porque, quando a pastagem substitui a floresta, o solo fica muito compactado e acaba absorvendo pouquíssima água. Isso diminui significativamente o processo de evapotranspiração, ou seja, a emissão de vapor d’água pela floresta, que forma as chuvas – tão importantes nos períodos de estiagem.


Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Malu Delgado (chefia de reportagem e conteúdo), Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

Segundo o biólogo Marcelo dos Anjos, o que mais fragiliza as vidas na Amazônia não são os processos naturais nem os fenômenos climáticos, mas a falta de políticas públicas que respeitem o meio ambiente e adequem a vida humana à região

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