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Cada cabeça uma sentença: ruralistas e Indígenas são chamados pelo Supremo a negociar sobre direitos inegociáveis para os povos originários. Foto: Tukumã Pataxó/APIB

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Na manhã de segunda-feira, 5 de agosto, o governo brasileiro se preparava para enviar às pressas uma comitiva do Ministério dos Povos Indígenas a Mato Grosso do Sul para monitorar os ataques violentos de ruralistas aos Guarani Kaiowá na região de Douradina. Rebeca Andrade tinha se consagrado nos Jogos Olímpicos de Paris com o ouro na apresentação de ginástica artística no solo. Os mercados financeiros viviam mais um dia de pânico, temendo uma recessão nos Estados Unidos. A crise na Venezuela se arrastava após Edmundo González ter se declarado presidente eleito. Era mais um dia em que o mundo exibia seu mosaico complexo de muitas urgências e profundas assimetrias. Mas nada seria tão relevante para decidir o futuro do planeta quanto uma audiência, naquela mesma data, no Anexo II do Supremo Tribunal Federal (STF) em Brasília. Em uma pequena sala no 4º andar do prédio onde ministros definem se leis estão sendo aplicadas de acordo com a Constituição brasileira, homens de gravata iriam discutir com representantes dos povos Indígenas se deles seria arrancado o direito a terras ocupadas por seus ancestrais desde antes da colonização. Demarcar Terras Indígenas é uma medida fundamental para garantir a conservação da Amazônia e de todos os biomas. Portanto, decisiva para a existência de toda a humanidade.

Era o início dos trabalhos da comissão especial de conciliação, que colocaria em debate a tese do marco temporal, uma concepção que ruralistas tentam a todo custo fazer valer. Para seus defensores, os povos Indígenas só teriam direito a suas terras ancestrais se estivessem nelas na data da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. A regra ignora que, antes da redemocratização (e mesmo depois), diversos povos originários tiveram que fugir para não ser exterminados – ou foram expulsos por grileiros, mineradores e também por projetos do Estado brasileiro.

Em setembro de 2023, o STF concluiu o julgamento do marco temporal e o declarou inconstitucional. Mas o Congresso, sob o controle da Frente Parlamentar da Agropecuária – da qual são signatários mais da metade dos deputados e senadores –, passou a boiada por cima do Supremo e aprovou, dias depois, a Lei 14.701 para dizer que vale, sim, o marco temporal, apesar da decisão da Suprema Corte.

O futuro num placar: Indígenas acompanharam, em setembro do ano passado, o julgamento do marco temporal no STF, derrotado por 9 a 2. Foto: Matheus Alves/SUMAÚMA

Para aumentar a pressão, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado agendou para 30 de outubro a votação de uma Proposta de Emenda Constitucional (a PEC 48/2019) que pretende colocar o marco temporal dentro da Constituição, o que deixaria os Indígenas ainda mais vulneráveis.  Mas ainda não seria um ponto-final no confronto com o STF – PECs também podem ser declaradas inconstitucionais. Pressionado pelo Congresso, o Supremo decidiu botar ruralistas e Indígenas – e seus interesses totalmente opostos – frente a frente. Em uma mesa em formato de U, eles deveriam, na intenção dos ministros, chegar a um entendimento comum. A ideia da suposta conciliação partiu do ministro Gilmar Mendes, que definiu, inclusive, qual seria a composição da comissão. Mendes é relator de  uma ação ajuizada por três partidos ligados ao bolsonarismo (PL, PP e Republicanos) que defende a “constitucionalidade” do marco temporal.

Se aprovado, o marco temporal pode paralisar o processo de demarcação de 271 Terras Indígenas, conforme dados da Funai, com pendências de regularização – 149 ainda estão em fase de estudo, 48 já delimitadas, 62 declaradas, 12 homologadas, mas nenhuma delas regularizada. A fase final da demarcação é a homologação, pela Presidência da República, mas somente a regularização, pela Secretaria de Patrimônio da União, conclui o processo de reconhecimento de uma área como Terra Indígena. O marco temporal é um risco mesmo para as terras já homologadas.

Às 14 horas daquele dia 5, os não Indígenas da Corte resolveram que três eixos seriam colocados na mesa para negociação: 1) a demarcação das Terras Indígenas; 2) o direito à terra de comunidades removidas de seu território à força antes da promulgação da Constituição de 1988; e 3) a exploração dos recursos naturais em Terras Indígenas. A expectativa do movimento Indígena era baixa. Semanas antes de enviarem seus representantes a Brasília, lideranças expressavam enorme hesitação em participar da audiência.

Foram quarenta dias de conversas até que a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a Apib, concordasse em comparecer ao Supremo naquela segunda-feira à tarde. Negociar exatamente o que, se a Constituição de 1988 concedeu aos povos originários direitos fundamentais, o direito às suas terras, e se o Supremo já reafirmou, em setembro de 2023, que o marco temporal é inconstitucional? Havia ainda um agravante: o palco sugerido para a “negociação” é a capital federal, onde sucessivos capítulos violentos de segregação, preconceito e racismo institucional estão guardados na memória dos Indígenas. Em 19 de junho, por exemplo, o coordenador jurídico da Apib, Mauricio Terena, e um grupo de Indígenas foram barrados no restaurante do Supremo, no intervalo de compromissos com os ministros da Corte. O episódio foi classificado como “erro de procedimento pontual” pelo STF.

Na primeira reunião da suposta “conciliação”, quinze minutos antes de a sessão começar, Indígenas foram novamente barrados na entrada do prédio, ainda que a audiência tenha sido amplamente divulgada pela imprensa e que a segurança do STF tivesse recebido orientações expressas sobre a importância de se garantir acesso democrático. “Disseram que a sala estava reservada. Foi preciso fazer um escândalo pra gente conseguir entrar. Gravamos e o vídeo foi exposto pela Apib”, contou a SUMAÚMA Auzerina Makuxi, mestranda em direito na Universidade Federal de Goiás, que viajou de carro com mais três estudantes Indígenas, num “bate-volta” de Goiânia a Brasília, para assistir ao encontro no Supremo. No vídeo, Terena, o mesmo advogado barrado em junho no restaurante do STF, faz um desabafo e mostra estar cansado de tanto racismo institucional.

Mesmo relutante, a Apib concordou em participar, sobretudo após a intervenção insistente do Ministério dos Povos Indígenas (MPI) e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). Antes, no entanto, teve o cuidado de questionar nos autos – ou seja, nos processos que correm no Supremo – a inadequação de se propor uma mesa de conciliação sobre direitos fundamentais de minorias. Também invocou que o relator das ações que questionavam a inconstitucionalidade do marco temporal na Corte fosse, novamente, o ministro Edson Fachin. Ele foi o relator quando o Supremo derrubou, em setembro de 2023, por 9 votos a 2, a tese do marco temporal.

De nada adiantaram os apelos. Os Indígenas insistiram, então, num pedido para que fosse garantida, na suposta conciliação, a presença de representantes de cinco associações regionais Indígenas, além do representante geral da Apib. Foram atendidos, mas atenção à aritmética: os Indígenas teriam seis representantes na audiência, num total de 24 integrantes.

O início

A sala está dividida em dois lados. Nas fileiras da direita é onde se avistam mais Indígenas. Os jornalistas recebem orientações de que só será permitido gravar as falas iniciais do presidente do Supremo, Luís Roberto Barroso, e do ministro relator, Gilmar Mendes. Um link da reunião, no Zoom, foi divulgado pelo gabinete do ministro Gilmar para os interessados em participar. Não há, porém, transmissão on-line no site do STF. Não se sabe se a reunião está sendo gravada pelo gabinete.

Barroso abre a audiência se desculpando pelo “erro grave da segurança” que barrou pessoas de comunidades Indígenas. O ministro apresenta os participantes da comissão de negociação: seis membros do Congresso (três da Câmara e três do Senado); quatro membros da União (um do Ministério dos Povos Indígenas, um da Advocacia-Geral da União, um do Ministério da Justiça, um da Funai); dois representantes dos estados (um do Fórum de Governadores e um do Colégio Nacional de Procuradores do Estado e do Distrito Federal); um representante dos municípios (da Frente Nacional de Prefeitos); cinco indicados pelos autores das ações que questionam o Supremo sobre o marco temporal; e os seis membros reivindicados pela Apib.

“Acho que é uma experiência talvez pioneira no Supremo, em que se está buscando uma solução consensual para um problema complexo”, pontua o presidente do Supremo. O ministro deixa claro que sua visão sobre o marco temporal “continua exatamente a mesma” – pela inconstitucionalidade –, mas elogia o esforço do colega Gilmar Mendes pela busca de um acordo. No passado, Barroso disse publicamente que Gilmar era “uma pessoa terrível, […] com um temperamento agressivo, grosseiro, rude”.

Solução heterodoxa: ministros Barroso e Gilmar Mendes enfatizaram, na abertura do encontro, a importância de encontrar uma saída consensual para conflitos. Foto: Malu Delgado/SUMAÚMA

O atual presidente do Supremo advoga que “a conciliação, sempre que possível, é melhor do que o conflito, porque em conflito sempre há vencedores e vencidos”. Entre um riso discreto compartilhado com o ministro Gilmar, diz que é difícil acertar o placar de votação no plenário do STF, “mesmo quando as coisas parecem simples”. “Portanto, ninguém deve participar deste debate achando que já ganhou.”

A despeito de ser visto como um ministro que tem proximidade com o agronegócio predatório, Gilmar Mendes enfatizou que “o Supremo não hesita na proteção dos direitos fundamentais”. E minimizou as críticas que tem recebido de constitucionalistas: “Não se preocupem aqueles que enxergam no diálogo o enfraquecimento dos direitos constitucionais. Esse tribunal jamais admitirá uma solução que não contemple a observância da Constituição Federal”.

O preâmbulo dos ministros dura mais de uma hora. As considerações de Gilmar Mendes sobre os tamanhos das Terras Indígenas, que avalia serem “exageradas” quando comparadas à extensão geográfica de Portugal, um país que ele visita com frequência, já deixaram de causar indignação aos Indígenas. Pelo menos aparentemente. Eles apenas escutam pacientemente o argumento que desconsidera a história, a cultura e o modo de vida dos povos originários no Brasil.

Mas há uma pergunta retórica do ministro que preocupa, sobre “o que fazer com os não Indígenas” que vivem em terras reivindicadas pelos povos originários. E o próprio relator responde: “Tratá-los indistintamente como violadores de direitos, sem identificar a natureza da ocupação e sua cronologia, não parece solução constitucionalmente adequada, considerando que em muitos casos a população se deu em decorrência de ações tanto do governo federal quanto de estaduais. Há inúmeros direitos fundamentais em jogo no conflito que perdura por séculos”.

O primeiro Indígena que recebe a palavra, às 15h35, é o advogado Mauricio Terena, da Apib. Ele inicia sua apresentação com formalidade. Lê sete pontos que a Apib questiona nos autos. O primeiro, fundamental, é que suspender os efeitos da lei do marco temporal aprovada em setembro de 2023 no Congresso é “medida necessária para preservação dos direitos dos povos Indígenas e deve ser prévia ao início dos trabalhos da comissão especial de conciliação”.

Voz Indígena: Mauricio Terena, coordenador jurídico da Apib, afirmou que é impossível negociar sem a suspensão da lei do marco temporal. Foto: Antonio Augusto/STF

A Apib registra ainda a “inadequação da instauração de comissão especial de conciliação para tratar de ações que versam sobre a proteção de direitos de minorias” e pondera que os direitos Indígenas são indisponíveis, ou seja, direitos individuais dos quais não se pode abrir mão. Sustenta, também, que não existe acordo sobre direitos Indígenas se os Indígenas não concordarem com a conciliação, que os trabalhos da comissão devem ser públicos e que é inadequado colocar, num mesmo balaio, a discussão sobre o marco temporal e exploração de minério em Terras Indígenas, como é a proposta.

A audiência segue, agora sob o comando e a responsabilidade do juiz auxiliar Diego Viegas Veras. Ele se apresenta como “um apaixonado pela conciliação” e diz que, ali, os Indígenas poderão “falar sobre suas vidas”.

Ex-ministra da Agricultura no governo do extremista de direita Jair Bolsonaro, a senadora Tereza Cristina (PP de Mato Grosso do Sul), representante do agrogegócio e titular da comissão de conciliação – portanto, com direito a voto –, é a próxima a falar. Demonstra tranquilidade na fala. O desconforto, até agora, só ficou evidente do lado dos Indígenas. Se aproxima das 16 horas. Após se referir ao governador de “seu estado”, Eduardo Riedel (PSDB) – também um expoente conhecido dos interesses agropecuários e membro da comissão –, a senadora finaliza: “Venho despida de qualquer preconceito para ajudar no encaminhamento e ver se conseguimos chegar a um denominador comum. Que ninguém saia prejudicado, e que todos tenham a justa consideração de seus problemas”.

Racismo institucional: Indígenas já foram recebidos com violência diversas vezes em Brasília, como no protesto de junho de 2021, durante o governo Bolsonaro. Foto: Sergio Lima/AFP

Riedel ganha a palavra. Repete os elogios a Gilmar Mendes, já feitos por Tereza Cristina. Explica que não está ali como governador de Mato Grosso do Sul, mas como representante do Fórum de Governadores, da “pluralidade dos estados brasileiros”. “Tenho as minhas convicções”, ele não esconde, para depois completar: “Mas aqui represento toda essa pluralidade. Já antecipo a diretriz central: de buscar uma pacificação, a segurança jurídica”. O governador teve que sair antes do final da audiência, diante do agravamento dos conflitos em seu estado.

A deputada federal Célia Xakriabá (PSOL de Minas Gerais) inicia sua fala com um canto. Ela é suplente, não tem direito a voto na comissão. Faz piada com isso. Lembra que no Congresso ela é sempre suplente dos ruralistas. E ali, na comissão que vai tratar de direitos Indígenas, ela, Indígena, é mais uma vez suplente. “É a mesma coisa de dizer que sou suplente de Pedro Álvares Cabral”, diz, arrancando risadas da plateia. A parlamentar traduz o que diz em seu canto: “O futuro vai ser ancestral, ou não será”.

Vozes dissonantes: a senadora Tereza Cristina, ao lado dos ruralistas, e a deputada Indígena Célia Xakriabá tinham expectativas distintas na reunião. Fotos: Antonio Augusto/STF

Os representantes da Advocacia-Geral da União (AGU) e da Procuradoria-Geral da República (PGR) são os próximos a falar. Ambos externam a preocupação com o aumento exponencial da violência após a aprovação da Lei 14.701, do marco temporal, em 2023. A Procuradoria-Geral, que tem como missão constitucional a defesa de direitos dos povos Indígenas, não tem direito a voto. É somente observadora – um ponto que surpreendeu o movimento Indígena. Curiosamente, essa foi uma decisão do ministro Gilmar Mendes, da qual a Procuradoria-Geral não recorreu.

A audiência já se estende por mais de duas horas. Quando a advogada Eloísa Machado, convidada para assessorar a Apib, começa a cobrar respostas claras sobre como vai funcionar aquela comissão, a tensão escala. Ela deixa claro que a Apib não dará anuência a nenhum entendimento sem entender as regras do jogo. E pontua sobre o absurdo da lógica da maioria quando se trata de grupos vulneráveis. “Isso precisa estar previamente definido para que a Apib possa analisar a forma de participação e se de fato esse é um espaço legítimo de diálogo, ou se ele é um espaço de imposição de uma vontade da maioria”, pontua ela.

O juiz Veras diz que compreendeu, e continua: “A comissão em si é um primeiro passo para uma futura decisão. Quais são os passos seguintes? O plenário do STF. Eventualmente, se algo sair daqui, contrário aos interesses, como a doutora falou, usando as suas palavras, da Apib, ou dos interesses Indígenas, com certeza o plenário do STF poderá dar a palavra final”.

A advogada insiste: “Há uma assimetria das condições de negociação em razão da vigência da lei (…). Um dos lados está sob constante ameaça de morte, e isso precisa ser considerado no momento de se instaurar essa comissão”. Ela continua: “Só a suspensão da lei do marco temporal pode garantir condição de igualdade entre as partes”.

Décadas de resiliência Indígena: em 2000, o então presidente do Senado Antonio Carlos Magalhães reagiu – e foi contido por Marina Silva –, à pressão de Henrique Iabaday, do povo Suruí, pela aprovação do Estatuto das Sociedades Indígenas. Foto: Lula Marques/Folhapress

Diego Veras dirige-se à “doutora” e diz que vai repetir o óbvio. “Se aqui os povos Indígenas se manifestarem contrariamente a qualquer tipo de solução, creio que a representação da Funai, do Poder Executivo, que também representa os interesses dos Indígenas, saberá acolher esse intento.” Rebate, então, a professora de direito que auxilia a Apib: “Com todo respeito, Excelência, mas não supre a própria representação dos Indígenas do Brasil”.

“Não supre”, reconhece Diego Veras. “Estamos falando o seguinte: evidentemente a Funai, como órgão voltado à assistência Indigena, saberá também colher esse posicionamento”, dispara o juiz instrutor. E é neste momento que o caldo entorna de vez.

O meio

Alberto Terena, liderança do povo Terena e um dos escolhidos pelo movimento Indígena para estar na mesa de conciliação, se levanta, indignado. “Por que nos trouxeram aqui? Querem nos tutelar novamente? Não dá para aceitar isso, doutor. Não dá!” A denúncia-desabafo de Terena expõe o verniz das hostilidades que nascem nos gabinetes. “Nós estamos aqui como representantes de nosso povo. Eu sou consequência destes 1.500 anos [de colonização]. Eu sou considerado perigoso pelo Estado brasileiro por ir em busca de meus direitos. Estamos aqui diante do Supremo Tribunal Federal, e dizem que nós ainda somos representados pelo órgão indigenista? Não somos tutelados.”

A voz forte de Alberto Terena torna evidente o desconhecimento da questão Indígena e a insensibilidade na sala. “Nosso povo está aqui, doutor. Desculpe, desculpe, eu não queria fazer isso. Estou aqui a todo tempo paciente. Mas chega a um momento desse de dizer que o Estado brasileiro vai continuar nos representando? E nosso povo vai continuar morrendo?” Terena cita a senadora Tereza Cristina e o governador Eduardo Riedel. “Governador, quando levantarem uma bandeira aqui, eu sei qual é a que o senhor vai levantar. E sei qual é a minha também. Mas qual é a posição do Estado brasileiro? Qual é a posição dos guardiões da nossa Constituição?”

Terena segue: “Chegaram ao ponto dessa ridicularidade de chamar o nosso povo aqui para discutir os nossos direitos? É brincar com o nosso rosto, brincar com as nossas lideranças. Por que não demarcar nossas terras, então? Os senhores acompanharam todo esse processo, vendo desde ontem [o fim de semana que antecedeu a audiência, nos dias 3 e 4, em Douradina] pessoas com o crânio pra fora, pedindo socorro, pedindo ‘pelo amor de deus, nos deixem viver’! E a soja está falando mais alto.”

Dois dias antes daquela audiência, a Apib e o Ministério dos Povos Indígenas receberam vídeos dos Guarani Kaiowá sobre ataques de ruralistas em Douradina, que deixaram ao menos oito feridos, cinco deles hospitalizados. Três Indígenas foram atingidos por armas de fogo. A área foi reconhecida como território tradicional em 2011, mas a demarcação foi suspensa por decisão judicial. Os Indígenas iniciaram um processo de retomada, e as cenas de violências são constantes. Os ruralistas acusam o povo originário de invasão de propriedade privada. Em 17 de julho, o governo federal autorizou o envio de tropas da Força Nacional de Segurança para deter os confrontos.

Feridas que se arrastam: imagem de Indígena Guarani Kaiowá ferido no confronto com ruralistas em Douradina, Mato Grosso do Sul, foi divulgada dois dias antes da audiência. Foto: Gabriel Schlickmann/Reuters

E então, na audiência, Alberto Terena faz seu apelo final: “Barrem essa Lei 14.701, que é a continuidade da nossa morte. Não dá pra gente buscar palavras bonitas para enfeitar a legalidade do crime dentro do nosso país. Nosso direito constitucional originário nós não vamos negociar”.

Eloísa Machado afirma que o movimento Indígena avaliará, com as informações dadas durante a audiência, se permanecerá na conciliação. O juiz Diego Veras, que já havia deixado claro que a “negociação continua” com ou sem Indígenas, engata um comentário que os Indígenas interpretaram como clara ameaça. Diz que o Congresso marcou a data de votação da Proposta de Emenda Constitucional (PEC 48) sobre o marco temporal. “Entrou na lista de prioridade a PEC do marco temporal. Se os povos Indígenas entendem que é melhor a espiral do conflito, tudo bem. Nós estamos querendo propor uma outra lógica. Dialogal, participativa, democrática.”

Entre um comentário e outro, o juiz insiste que é preciso definir a data da próxima reunião. Mas há muitas dúvidas no ar. Haverá recomendação da comissão a Gilmar Mendes e ao STF para que se suspendam os efeitos da lei do marco temporal enquanto eles negociam? Tem sentido a comissão prosseguir sem a presença dos Indígenas? Há simetria de participação? Há saída que não seja por consenso da maioria (pelo voto), considerando que os Indígenas são minoria?

Eloy Terena, advogado e secretário-executivo do Ministério dos Povos Indígenas, explica que a pasta não os representa, mas defenderá seus direitos. Ele pede à comissão que dê um passo atrás, seja mais plural, adote uma visão intercultural. “São 305 povos falantes de 274 línguas. Imagina a dificuldade dessas cinco lideranças de explicar tudo isso que a gente está debatendo aqui lá na base?” Muitas lideranças ali presentes, 24 horas antes, estavam sendo atacadas em Mato Grosso do Sul, pontuou. “Eu posso mandar os vídeos para Vossa Excelência.”

Já passam das 18 horas e nem Barroso, nem Gilmar, nem a presidenta da Funai, Joenia Wapichana, nem os parlamentares ruralistas, nem o governador de Mato Grosso do Sul estão mais na sala. O coordenador-executivo da Apib, Kleber Karipuna, só consegue a palavra às 18h52. O juiz instrutor, Diego Veras, avisa que também precisará se ausentar às 19 horas, porque tem uma audiência de custódia. Repete que precisam marcar a data do próximo encontro, a despeito de a Apib ter pedido, por quatro vezes, 48 horas para pensar sobre a sua decisão de permanecer ou não na comissão.

Karipuna diz que todos sentiram como ameaça a fala do juiz Diego Veras sobre a decisão do Congresso de votar em outubro uma emenda constitucional sobre o marco temporal. “Acho que quem não está entendendo não são os povos Indígenas, é o próprio Congresso, que a todo momento reage a uma decisão do Supremo. E é por isso que estamos aqui.”

O juiz instrutor segue ressaltando que é preciso marcar nesta reunião uma data para a próxima, já que as salas do Supremo vivem lotadas e precisam ser reservadas com antecedência. “Isso é um problema”, ele diz. Em nome dos parlamentares, a diretoria-geral da Câmara também avisou que é ano eleitoral e não vão estar tão disponíveis assim. O movimento Indígena representa uma população de quase 1,7 milhão de pessoas. O Supremo tem 11 ministros. A Câmara, 513 deputados. O juiz instrutor pondera que existe a possibilidade de participação on-line. Do meio da plateia, Alessandra Korap Munduruku, ativista mundialmente conhecida e reconhecida, grita: “Se tem aldeia que nem tem água, como é que vai ter internet?”.

Uma representante do Ministério dos Povos Indígenas pergunta ao juiz, mais uma vez, se não seria razoável reservar a data da próxima reunião, 28 de agosto, e dar o prazo de 48 horas para a Apib se decidir. O juiz, finalmente, acata.

A força da representação: Alberto Terena (esq.) e Kleber Karipuna, da Abip, apontaram o desconhecimento dos brancos sobre o que diz a Constituição. Fotos: Antonio Augusto/STF

O fim

Também representante dos povos Indígenas, a advogada Kari Guajajara, cujo nome em português é Maria Judite da Silva Ballerio, é a última a falar. O juiz Diego Veras se prepara para sair, os ponteiros já passam das 19 horas. Ela cumprimenta os parentes em sua língua originária. Pede um tradutor. Não há. O juiz já havia explicado que o Supremo consultou o MPI e a Funai sobre a necessidade de tradutores de línguas Indígenas. “No fim das contas não tem tradutor. Então é sempre assim: os Indígenas sempre saem no prejuízo”, diz Kari. “É isso que a gente está fazendo aqui, conciliando sobre um problema que não fomos nós que criamos.”

O juiz Diego Veras só se refere a Kari Guajajara como “Judite”. “E como é que eu posso falar em consulta, em conciliação etc. se as pessoas não estão entendendo nada do que está acontecendo aqui? […] Se o Supremo está mesmo disposto a fazer uma mesa de conciliação com a presença dos Indígenas, precisa considerar adaptações”, desabafa Kari. A Indígena pergunta qual é o valor da voz Indígena naquela mesa, já que o juiz instrutor só considerou o prazo de 48 horas solicitado pela Apib quando uma não Indígena, do Ministério dos Povos Indígenas, fez o pedido. “Como é que todo mundo está sugerindo para a gente continuar aqui se nós não somos ouvidos?”

Sem atropelo: Kari Guajajara fez uma fala comovente, denunciou preconceitos e disse que não assistirá calada às violações dos direitos Indígenas. Foto: Antonio Augusto/STF

O cotidiano, ensina a Indígena, traz situações veladas de preconceito, enraizadas nas instituições. “Queria deixar isso registrado em ata. Eu não vou passar calada nessa conciliação, por mais de cinco, quatro horas, sendo atropelada. Não seremos atropelados desse jeito. Os povos Indígenas resistem há muitos anos, e continuaremos resistindo da nossa forma.”

Com a ausência de Diego Veras, que não ouviu a fala de “Judite”, o juiz instrutor Lucas Faber de Almeida assume a coordenação. Ele reforça que os Indígenas não teriam nada a perder na conciliação.

“Doutor Lucas, com todo o respeito, nós temos tudo a perder. E é por isso que a gente está resistindo aqui até o último segundo. Não é um debate jurídico, mas um debate político.” O “experimento novo” do Supremo, alertou Kari Guajajara, “tem uma potencialidade para ser muito positivo”, mas pode, também, ficar marcado “como uma das maiores violências aos povos Indígenas no Brasil”. Kari aponta para Alessandra Munduruku e cita as “tantas mães Indígenas que saíram dos seus territórios, deixaram os seus filhos para vir pra cá, pra ver como é que as suas vidas futuras vão ser definidas”.  

“A gente sai daqui com a garganta entalada em relação a tudo o que aconteceu”, finalizou Maurício Terena, visivelmente exausto.

É noite e as lideranças da Apib dão uma entrevista coletiva à imprensa em frente ao prédio do Anexo II. Passa das 20 horas. “Api o quê?”, pergunta um jornalista, sem ter a menor ideia do que significava a sigla. Os advogados contrários à tese do marco temporal caminham juntos, reflexivos, dizendo-se ainda perplexos com cenas da audiência. Os povos Indígenas precisam refletir. Mas em seu tempo. Um tempo que não é o mesmo das instituições.

Epílogo

Oito dias após a audiência, SUMAÚMA ouviu mais uma vez o coordenador jurídico da Apib, Mauricio Terena. O processo de consulta aos povos originários sobre participar ou não daquela negociação ainda estava em andamento. Por óbvio, não seria possível ouvir 305 povos em 48 horas. Para a Apib, o importante é escutar o que os parentes têm a dizer. Faltando dois dias para o novo encontro da comissão, marcado para 28 de agosto, SUMAÚMA apurou que os Indígenas decidiram anunciar durante a audiência se permanecerão ou não naquela mesa de conciliação.

“Ficou bem evidente para todos os que acompanhavam aquela audiência, seja advogado ou não, a inabilidade do juiz instrutor em conduzir a reunião. Não houve um trato adequado às nossas demandas, numa perspectiva intercultural, que não reproduz papéis e padrões coloniais que as instituições carregam. Foi uma audiência muito violenta”, concluiu Terena. Para ele, a audiência é um reflexo do que acontece nos tribunais das 27 unidades da Federação e em todas as instituições brasileiras.

Defensora de causas Indígenas há décadas, Deborah Duprat, que acompanhou a audiência, disse a SUMAÚMA, no dia seguinte à audiência, se sentir “agoniada”. Para ela, que viu a democracia retornar com a Constituição de 1988, o debate atual é preocupante. O artigo 231 da Carta quebrou paradigmas e assegurou direitos indisponíveis aos Indígenas, que não são passíveis de transação. “Porque é um direito coletivo, ninguém é titular, ninguém pode transacionar aquilo. O Supremo já afirmou que esses direitos não podem ser suprimidos nem por emenda constitucional. Então a gente está com um primeiro problema sem saber o que, de fato, eles pretendem conciliar.”

“Ninguém senta a uma mesa de conciliação sem ter clareza sobre as regras”, afirma Eloísa Machado, em uma conversa posterior à audiência. “Quando o Gilmar Mendes anunciou essa conciliação, o grande receio foi: a gente precisa saber quais são as regras dessa conciliação, e se os povos Indígenas terão a sua autonomia de vontade preservada e garantida se eles não quiserem participar de um acordo. Ou o acordo vai sair independentemente da anuência dos povos indígenas?”, questionou. O que foi dito na audiência: sim, a conciliação prossegue, mesmo sem a presença dos Indígenas.

Pelo menos um objetivo foi alcançado pelos defensores dos Indígenas. “A audiência conseguiu compartilhar constrangimento. Ficou claro que aquilo era inaceitável. Como professora de direito constitucional, vou denunciar isso para o resto da minha vida.”

O Núcleo de Solução Consensual de Conflitos do Supremo admite que “um dos limites do objeto da conciliação é a análise da constitucionalidade das leis, já que não se pode negociá-las sem considerar o conteúdo da Constituição”. Em nota enviada a SUMAÚMA, o time de conciliadores da Corte explica que, “no entanto, as partes podem buscar consenso sobre os efeitos concretos e os aspectos práticos da lei questionada”. O Supremo considera que todos os critérios de funcionamento da comissão foram publicamente revelados e todas as dúvidas sobre procedimentos “foram respondidas ao longo da audiência”.

A famosa escultura de granito de Alfredo Ceschiatti em frente ao prédio do Supremo invoca a deusa grega Têmis, guardiã das leis e da Justiça, com seus olhos vendados para ressaltar a imparcialidade. No seu grito por justiça, Alberto Terena lembrou bem que os engravatados e poderosos, que querem terra para produzir e tratam a floresta como mercadoria, não conseguem entender o que é a terra para os Indígenas. Referência na Amazônia por sua luta incansável pela vida e contra a hidrelétrica de Belo Monte, a escritora-floresta Raimunda Gomes da Silva, Beiradeira do Rio Xingu, certa vez disse que não entende muito a lei. “Os caras do mal fazem lá um risco, a tal da rubrica, e acaba meio mundo. Aquela venda lá na cara da [estátua] Justiça dizem que é para não ver quem vai pegar [julgar]. Num é nada! É lei pra num ver quando o dinheiro é pouco. Quando o dinheiro é muito, vê… A Justiça só vê o que ela quer. Tem grana? Abaixa a venda. Porque se fosse pra ver, tinha que ter um olho grande, bem arregalado. Por que é cega? Porque não querem enxergar.” Os Indígenas sabem que Raimunda tem razão.

Futuro ancestral: Indígenas têm protestado contra o marco temporal em todo o país por entenderem que isso levará ao fim da vida deles e do planeta. Foto: Fernando Martinho/SUMAÚMA


O efeito ‘backlash’ 

O Supremo busca uma “saída heterodoxa”, nas palavras dos ministros Gilmar Mendes, autor da ideia da conciliação, e do presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, para resolver os confrontos que envolvem o reconhecimento, a demarcação, o uso e a gestão de Terras Indígenas. Os ministros querem dar um basta ao que o mundo jurídico batizou de “efeito backlash” – o Judiciário toma uma decisão,  o Legislativo ignora e aprova uma lei na direção contrária. O marco temporal, a tese dos ruralistas de que os Indígenas só podem ter direito à terra se já estivessem nela em 5 de outubro de 1988, ignora direitos que a sociedade brasileira concedeu aos Indígenas na Constituição, numa recomposição democrática e numa tentativa de reparação histórica. 

A comissão foi criada antes que o Supremo pensasse em julgar cinco ações – três (ADIs) pedem a declaração da inconstitucionalidade do marco temporal; uma (ADC) pede a declaração da constitucionalidade; e outra (ADO) quer regulamentar quais são as atividades econômicas que podem ser exploradas dentro de uma Terra Indígena. Para os Indígenas, abre-se uma porta para permitir a mineração em seus territórios e acelerar o fim do mundo. Em uma das ações que tramitam no Supremo, (ADO 86, Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão), o Partido Progressistas pede que sejam interpretados trechos da Constituição que permitiriam a mineração em Terra Indígena, alegando que há omissão dos poderes sobre como devem ser regulados trechos do texto constitucional. Representantes deste interesse são titulares da comissão. E esse tema será colocado em debate.

Eloísa Machado, professora de direito constitucional e advogada em direitos humanos que assessorou a Apib, disse a SUMAÚMA que a decisão de Gilmar Mendes é controversa, porque envolve ações de controle de constitucionalidade. “A ideia de conciliação em si não é ruim, ela vem para se apresentar como mais uma possibilidade de resolução de conflitos num ambiente menos adversarial. Mas a gente está falando de uma norma que em tese é constitucional ou é inconstitucional. Então, é muito estranho imaginar conciliação quando não há partes.”

A comissão de conciliação se ampara também na Lei 13.140/2015, conhecida como Lei da Mediação. “Ninguém será obrigado a permanecer em procedimento de mediação”, diz o texto da lei. “Essa lei é para conflitos interpessoais. Por exemplo: você, com seu fusquinha, bateu numa Mercedes”, explica Eloísa Machado. No caso das ações que questionam o marco temporal, a história do fusquinha e da Mercedes não se encaixa. 

“A conciliação, numa sociedade historicamente assimétrica, é muito desproporcional. Numa audiência de conciliação, as partes são colocadas em igualdade de condições quando, materialmente, elas não têm as mesmas igualdades, sequer de acesso à Justiça. Isso eu aprendi com o Davi [Kopenawa]: ‘negócio nenhum com as coisas da gente. Nada de negociar’. Esse era o ponto de partida [para os advogados]”, recorda Deborah Duprat, que foi subprocuradora-geral da República e acompanhou a audiência naquele dia como membro da Associação Juízes para a Democracia.

 

Resistir para existir: a luta pela demarcação de terras e pelo marco ancestral está presente em cada corpo Indígena. Foto: Lela Beltrão/SUMAÚMA

Atualização: este texto foi modificado no dia 27 de agosto para atualizar os dados da Funai sobre demarcação e o número de Terras Indígenas possivelmente afetadas pelo marco temporal


Reportagem e texto: Malu Delgado
Edição: Eliane Brum e Talita Bedinelli
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Montagem de página e acabamento: Natália Chagas
Coordenação de fluxo de trabalho editorial: Viviane Zandonadi
Chefa de reportagem: Malu Delgado
Editora-chefa: Talita Bedinelli
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