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Equador declarou estado de ‘conflito armado interno’ para combater grupos criminosos organizados, que também atuam na mineração ilegal e no tráfico em áreas da Amazônia. Foto: Rafael Rodriguez/Anadolu/AFP

A violência no Equador aumentou dramaticamente em 2023. Esse crescimento anda de mãos dadas com a presença de grupos do crime organizado no país, quadrilhas ligadas ao tráfico de drogas que expandiram seus “negócios” graças à mineração ilegal. Com isso, de 2020 para cá, eles não só conseguiram mais dinheiro, como legalizaram, por meio da lavagem, o lucro das atividades criminosas.

A mineração ilegal nessas localidades é acompanhada por tráfico de armas, explosivos, munições e pessoas. Afeta províncias amazônicas como Napo e Orellana, a menos de 300 quilômetros da capital, Quito — e não só pelo crescimento da violência e das ameaças, que obrigaram as comunidades a aceitarem a presença dos narcotraficantes, mas também por conta da poluição gerada pela mineração.

“Em termos de segurança, a província de Napo registra ações criminosas e atividades ilícitas de grupos do crime organizado que operam há anos (…). Eles tomaram nossa província, Sucumbíos e Orellana”, conta Sandra Rueda, deputada na Assembleia Nacional equatoriana pela província de Napo, que acompanha de perto a situação dessas comunidades. Entre 2019 e 2021, ela atuou como delegada da Defensoria Popular na região.

De acordo com diversas pessoas consultadas para este artigo, há uma dívida histórica muito grande do Equador com a Amazônia, onde estão os campos de petróleo que sustentam o país.

Os grupos do crime organizado — que estão presentes em 21 das 24 províncias do Equador — não se instalaram nelas apenas para fazer da mineração ilegal uma fonte a mais de renda. Fizeram isso também para mobilizar a economia dos povoados amazônicos, fornecendo crédito e se associando a pessoas de diversas localidades, com o objetivo de lavar o dinheiro obtido nas atividades ilegais. A violência vivida nas cidades grandes também alcançou os pequenos municípios da Amazônia.

O resultado foi que 2023 se tornou um dos anos mais violentos para os equatorianos, com uma estimativa de 8.009 homicídios intencionais entre janeiro e dezembro, alta de 66% em relação a 2022. Ou seja, em média, a cada 60 minutos uma pessoa foi assassinada por violência vinculada aos grupos narcocriminosos.

É por isso que o decreto presidencial que instaurou um estado de emergência, assinado pelo presidente equatoriano Daniel Noboa em 8 de janeiro de 2024, se tornou um ponto de inflexão. Para enfrentar o crime organizado, membros das Forças Armadas e da Polícia Nacional saíram às ruas e entraram nas prisões, que são consideradas os postos de comando desses grupos.

Esse tipo de ação vem sendo encarado com preocupação pelas organizações de defesa de direitos humanos. Tanto o Comité Permanente por la Defensa de los Derechos Humanos quanto o Comité de Familiares por Justicia en las Cárceles têm estado vigilantes desde o primeiro dia, exigindo que não haja excessos dos militares e da polícia contra os detidos.

Mas a ação das Forças Armadas contra os grupos organizados tem mostrado resultados: até a conclusão desta reportagem, foram realizadas 118 mil operações, com 9.473 pessoas detidas, 241 delas acusadas de terrorismo, uma definição dada pelo Estado, e 160 ações contra grupos suspeitos de praticar terrorismo. Oito pessoas foram mortas. Isso teve reflexos políticos: Daniel Noboa mantém um índice de popularidade de 80%, de acordo com a empresa Comunicaliza.

O modelo da mineração ilegal na Amazônia equatoriana

Do ar, parecem pintinhas de terra que interrompem o amplo tecido verde da Amazônia equatoriana. Essas manchas cinzentas, pretas e marrons contêm espaços quadrados que foram tomados pela água. Nesse líquido, é derramado mercúrio para “limpar” o ouro e separá-lo das pedras. O metal, então, é entregue a pessoas que visitam os diferentes ranchitos — como são conhecidos esses acampamentos — para coletar os poucos gramas obtidos.

Mineração em províncias amazônicas se tornou uma nova fonte de renda para os grupos de narcotráfico e contamina os rios que abastecem as comunidades. Foto: Armando Prado/AFP

Segundo um relatório preparado pelo Ministério do Interior durante o governo do [presidente] Guillermo Lasso denominado “Estratégia Nacional contra o Crime Organizado 2023-2030”, é sabido que existem gangues criminosas nas províncias de Sucumbíos (dominada por Los Choneros, Tiguerones e Los Lobos), Morona Santiago e Pastaza (Los Choneros), e Napo, que é controlada pelos Los Lobos, ligados ao grupo criminoso mexicano Jalisco Nueva Generación. Na província de Orellana foram descobertas atividades de mineração ilegal, mas não se sabe que grupo está operando no território.

Além da mineração ilegal, o tráfico de drogas, de armas e a lavagem de dinheiro fazem parte dos negócios deles na Amazônia. Esses grupos também funcionam como substitutos para um Estado que parou de investir no setor público. O Equador vem de um governo — o de Guillermo Lasso — que investiu, entre janeiro e setembro de 2023, 779,3 milhões de dólares no país, menos da metade do que estava planejado para o ano inteiro (1,871 bilhão). Responsável pela segurança dos cidadãos, o Ministério da Segurança gastou 31 milhões de dólares dos 75 milhões programados para esse fim, o equivalente a 41%.

Em decorrência da ausência do Estado, os grupos organizados preenchem esse vazio e encontram fontes de dinheiro que vêm acompanhadas por uma carga de violência e de poluição. A contaminação por mercúrio é um problema enorme na região, pois a substância é jogada nos afluentes amazônicos ou se infiltra nos rios depois de ser absorvida pela terra. E esses rios abastecem cidades e povos indígenas na Amazônia.

Entre 2019 e 2021, a deputada Sandra Rueda, com o apoio de grupos como Napo Ama la Vida e Federación de Organizaciones Indígenas del Napo, se dedicou a denunciar a contaminação causada pela mineração na província. “Os espaços verdes significam muito. E não apenas para a natureza e a biodiversidade, mas também para os recursos hídricos que são importantes para nós”, afirma. “Estou falando das pessoas do setor rural, das comunidades e das nacionalidades, porque a água que elas usam vem das fontes hídricas, e é por isso que lutamos e fazemos denúncias constantemente. Porque [a mineração] não está afetando só a natureza e o solo; ela tampouco respeita a norma [federal] de não se intervir em áreas onde haja habitantes.”

Rueda diz que a mineração — seja legal ou ilegal — já está afetando as áreas urbanas de Napo, e que há registros de seus efeitos nos bairros da capital da província. “Não se trata mais apenas de uma questão de floresta (…) O impacto está ligado às áreas urbanas e povoadas”, justifica.

Além da ausência do Estado nessas áreas, o que fez com que os grupos criminosos aumentassem suas atividades nessas províncias? Uma fonte próxima à dinâmica legal na região — que não quis revelar seu nome por motivos de segurança — explica: “A mineração ilegal é uma atividade que permite lucros rápidos para todos, sem controle estatal (…) É literalmente um trabalho que se transforma em dinheiro imediatamente e é uma dinâmica atraente para muitas pessoas”.

Os adultos e os jovens que, acobertados pela máfia das drogas, estão envolvidos na mineração vendem ouro a 45 dólares o grama. As pessoas que o compram — membros dos grupos criminosos que investiram dinheiro para cavar poços, criar reservatórios e construir a infraestrutura ilegal — sabem que o valor por grama é mais alto no mercado: 65 dólares, em média.

Uma fonte que estuda a situação, e que pediu anonimato, disse que “as pessoas se dedicam à mineração e trabalham como loucas por 15 dias, sem descanso, para ganhar de 2 a 3 mil dólares, o que é muito dinheiro na Amazônia”. Essa quantia, segundo ela, é distribuída em um ciclo que perpetua a pobreza, porque a marginalização continua a existir. Para o narcotraficante, o ciclo de pobreza é necessário para o negócio. Comparada a atividades que podem encontrar alguma forma de rejeição ética, como o tráfico de armas ou de madeira, a mineração ilegal gera menos resistência, garante a fonte.

Um pouco de história

Os primeiros registros desse tipo de mineração datam do início do século 21, quando ela já ocorria, mas em escala mínima. Desde 2015, essa forma de mineração a céu aberto está em ascensão. E posteriormente, com o confinamento devido à pandemia da Covid-19 em 2020, a situação se agravou.

De acordo com o Relatório de Caracterização do Crime Organizado, apresentado em meados de 2023 pelo Observatorio Ecuatoriano de Crimen Organizado (Oeco), o aumento da presença de grupos criminosos do México e de cartéis colombianos começou em 2019. Antes, o Equador já era parte do mercado, com quadrilhas locais cujo foco era o transporte de drogas para a América Central. Mas as lutas pelo poder puseram fim a esse sistema.

Neste ano, mais de 118 mil operações policiais foram feitas no Equador e cerca de 250 pessoas foram presas por suspeita de terrorismo. Foto: Gerardo Menoscal/AFP

Grupos criminosos como Los Lobos, juntamente com dois outros grupos chamados Los Tiguerones e Los Chone Killers, trabalhavam sob as ordens de Los Choneros. Ainda que houvesse violência, ela não afetava diretamente os cidadãos.

Los Choneros, um grupo criminoso que surgiu no final do século 20 em Chone, cidade na província de Manabí, começou com extorsões, roubos e assaltos. Em 1998, eles passaram a usar o porto de Manta, em Manabí, para o envio de drogas ao México e aos Estados Unidos, e se tornaram os líderes incontestes dessa rota. Foi por meio de uma guerra entre bandos rivais que durou quase 20 anos que Los Choneros conseguiram ganhar poder e comandar o restante das gangues do país, estabelecendo vínculos com grupos mexicanos de tráfico de drogas.

A suposta paz chegou ao fim em 28 de dezembro de 2020. Em um shopping na cidade costeira de Manta, em Manabí, Jorge Luis Zambrano, conhecido como Rasquiña, líder do Los Choneros, foi assassinado. Isso significava que as gangues menores queriam se tornar protagonistas.

No momento, não há como quantificar os volumes em dinheiro que esses grupos criminosos obtêm com a mineração ilegal na Amazônia. O que se sabe é que o governo de Daniel Noboa, por meio de seu ministro das Finanças, Juan Carlos Vega, declarou que o país precisa de mais 1,306 bilhão de dólares para continuar lutando contra eles. Dinheiro que o Equador não tem.

Só entre 2021 e 2022, o crescimento do desmatamento na Amazônia equatoriana foi de 80%, o mais alto da região. Nos cinco anos até fevereiro de 2023, a Amazônia equatoriana sofreu a perda de 1.660 hectares de floresta, o equivalente a quase cinco vezes o tamanho do Central Park de Nova York.

Em províncias como Sucumbíos, Pastaza, Orellana e Napo, máquinas pesadas são usadas para remover a terra e expor o ouro nas centenas de acampamentos existentes. Há tantos acampamentos que eles podem ser encontrados até mesmo dentro de parques nacionais, áreas que, segundo a Constituição equatoriana, são zonas protegidas. Somente no Parque Nacional Podocarpus, localizado entre as províncias de Zamora Chinchipe e Loja, existiam 222 campos de mineração em 2023, o que afetou 25 hectares. Exceto em áreas de exploração de petróleo — com o objetivo de proteger as instalações —, a intervenção do Estado vem sendo mínima.

O que pode ser feito?

O Estado dispõe de informações importantes sobre a situação da Amazônia e sobre os grupos criminosos. Segundo o depoimento de Andrea Arrobo Peña, ministra equatoriana da Energia e Minas, diante da Comissão Especializada Permanente sobre Biodiversidade e Recursos Naturais da Assembleia Nacional, basta um exemplo para demonstrar a magnitude econômica da mineração ilegal. Em 17 de janeiro de 2024, ela afirmou que a realidade do rio Jatunyacu, que atravessa a comunidade de Yutzupino, na província de Napo, serve como prova. O Estado, por meio da Agência de Regulação e Controle de Energia e Recursos Naturais Não Renováveis, estimou que, tomando por base a área desmatada nessa região, a mineração ilegal tenha atingido, em 2023, vendas de 60,2 milhões de dólares (por quase 1 milhão de gramas de ouro extraído).

Combater a mineração ilegal na Amazônia equatoriana permitiria, a um só tempo, enfrentar uma das fontes de financiamento do tráfico de drogas e reduzir a poluição. Isso requer maior presença do Estado ou um trabalho conjunto dos países que compartilham o território amazônico. Segundo o Monitoring of the Andean Amazon Project, o desmatamento nas áreas amazônicas do Brasil, da Bolívia, do Peru e da Colômbia é grave. Além disso, um estudo da InSight Crime e do Instituto Igarapé, datado de agosto de 2023, afirma que a presença de grupos criminosos nas áreas amazônicas entre Colômbia, Peru, Brasil e Venezuela implica em aumento dos crimes de mineração ilegal e tráfico de madeira.

Conforme o estudo, na Colômbia e na Venezuela o crime organizado — que inclui grupos dissidentes das Farcs [Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia] — tributa atividades de mineração e negócios que surgiram em torno da área de mineração de ouro. No caso do Brasil, a quadrilha mais poderosa, o Primeiro Comando da Capital (PCC), já está entrando nessa forma de comércio, com presença no território Yanomami, na fronteira do Brasil com a Venezuela. A mineração ilegal é tão forte que até mesmo as empresas com concessões legais de mineração estão fazendo denúncias ao Estado em busca de proteção.

O estudo coloca ainda as comunidades indígenas como a primeira linha de defesa contra esse tipo de mineração, apesar das ameaças e dos ataques. No entanto, em muitos dos casos, as comunidades tiveram que ceder. Há também comunidades indígenas nas quais os grupos criminosos não conseguiram entrar, principalmente devido à sua organização. No Equador, um exemplo é a comunidade Sarayaku, que se defendeu das pressões do setor de petróleo e madeira com grande sucesso. Para uma fonte consultada, que preferiu o anonimato, é improvável que esses grupos penetrem em seu território. “A blindagem que existe em Sarayaku é o controle do território exercido por autoridades próprias”, diz ele. Em 2020, na época da pandemia, a autoridade Sarayaku já tinha impedido a entrada de madeireiros: “Eles não podem nos dividir e não vamos permitir isso”.


Reportagem e texto: Carlos Cedeño e Verónica Intriago
Checagem: Plínio Lopes
Tradução para o português: Paulo Migliacci
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o inglês: Charlie Coombe
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

Povo Sarayaku, da Amazônia equatoriana, conseguiu bloquear a entrada de petroleiras e madeireiros em seu território tradicional. Foto: José Jácome/EFE

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