É o fim da travessia do verão mais quente do hemisfério norte, possivelmente nos últimos 120 mil anos, quando o cinema Yanomami alcança Veneza. Eu, que acompanho o cineasta Morzaniel Ɨramari, sou tradutora de línguas e às vezes de mundos. Veneza, a famosa cidade-água italiana que existe há dezesseis séculos, hoje está mais do que nunca ameaçada por esse inimigo que nós, os não indígenas, criamos: a mutação climática. Quando expliquei ao líder e xamã Davi Kopenawa sobre nossa viagem a Veneza e sobre o risco de essa cidade desaparecer, submersa pela elevação do nível do mar, ele me pediu que transmitisse um recado e que espera que seja levado a sério: “O que vocês chamam de mudanças climáticas é Urihi a në yuo: é a vingança climática, é a vingança da Terra”. Nas palavras de Kopenawa, com a destruição da floresta e a morte dos xamãs mais velhos, os xapiri (espíritos auxiliares dos xamãs), revoltados com a destruição do planeta, estão se vingando de quem a destrói. Kopenawa diz que no futuro todos morreremos queimados ou afogados.
Estamos ali, sobre águas, e o cinema passa a ligar os europeus aos Yanomami, a Amazônia a Veneza, o xamanismo à tecnologia. Os filmes de Morzaniel Ɨɾamari, Edmar Tokorino, Aida Harika, Roseane Yariana e Dário Kopenawa foram exibidos na programação Gli Occhi della Foresta (Os Olhos da Floresta), realizada no dia 4 de setembro, durante a octagésima edição Mostra de Cinema de Veneza, um dos festivais mais prestigiados do mundo. Em uma grande tela, o cinema da floresta se torna um portal para conhecer e imaginar outras formas de existir neste planeta, caso nossa espécie queira continuar aqui.
Na Amazônia, os xamãs Yanomami trabalham para limpar a terra-floresta (urihi a) e segurar o céu, como mostra o filme Urihi Haromatimapë: Curadores da Terra Floresta, de Morzaniel Ɨramari. Os xamãs Yanomami trabalham incansavelmente para curar um mundo doente de nós, napëpë (não indígenas, inimigos).
Os cineastas Eryk Rocha, Gabriela Carneiro da Cunha e Morzaniel Ɨramari e a indigenista e tradutora Ana Maria Machado em Veneza. Foto: Giornate degli Autori
Junto com Eryk Rocha e Gabriela Carneiro da Cunha, produtores de três curta-metragens Yanomami, acompanho Morzaniel, amigo e parceiro de trabalho há dezesseis anos, com quem já dividi longas caminhadas pela floresta Amazônica e pelas cidades mundo afora. Caminho com ele pelas belas vias e pelos canais da cidade. O cineasta, que nasceu e viveu seus 42 anos com os pés na floresta, enxerga Veneza com desconfiança. Seu olhar contrasta com o maravilhamento que parece mover os milhares de turistas que se deslocam de suas casas até aquela cidade na beira do mar Adriático. Veneza é considerada uma das mais belas cidades do mundo, mas o Yanomami surpreende-se: “Por que é que os napëpë tiveram essa estranha ideia de fazer uma cidade em cima das águas?”.
Conto brevemente sobre a estratégia dos venezianos de construírem uma cidade na água para se defenderem das invasões dos que chamavam “bárbaros”. Morzaniel se mantém calado e pensativo, talvez eu não o tenha convencido. Nas noites que passamos em Veneza, ele me conta ter tido sonhos incomuns – e teme os xapiri daquela terra desconhecida. Em um quarto de hotel, sente seus pés instáveis. Estranha o turismo que engole Veneza, faz uma etnografia reversa de nós, a quem o xamã Kopenawa chama de “povo da mercadoria”, nós que parecemos querer consumir a cidade até seu fim:
– Um dia essas águas vão subir. Quando fui até a beira da água e vi ali todos os turistas caminhando, fiquei preocupado e pensei: “Por que eles estão felizes com isso? Por que eles andam por aí parecendo felizes tirando fotos, sem pensar que um dia a água vai subir e as pessoas dessa cidade não terão como fugir? Essas pessoas que os napëpë chamam de ‘turistas’ são aquelas pessoas que viajam. Quando eles escutam falar que existe uma cidade bem bonita, aqueles que fizeram seu dinheiro aumentar, dizem: ‘Eu quero ir lá! Quando eu tirar férias vou até lá, vou jogar fora meu dinheiro’. Eles pensam assim e vão. Usam roupas muito bonitas, brilhantes, são chamados de ricos: ‘Já que somos ricos, já que essa cidade é muito bonita, vamos andar bonitos!’. Porém, essas pessoas não têm pensamento, porque elas apenas dizem isso. Vêm de longe, chegam em aviões, ficam em hotéis caros e jogam dinheiro fora. Ficam tirando fotos sem razão: ‘Essa cidade é muito bonita, por isso vou tirar fotos!’. Acho que eles pensam assim. Mas eles não sabem cuidar”.
Aos olhos de Morzaniel, como cineasta da floresta, e Davi Kopenawa, como xamã, pensar sobre a possibilidade de Veneza desaparecer é pensar nos xapiri que se vingam daqueles que destroem o mundo. Alguns cientistas, calculando os altos índices de temperatura e aumento do nível do mar, dizem que a cidade poderá ficar submersa no ano 2100, daqui a menos de oitenta anos. Eu, que pertenço ao povo da mercadoria, sempre ouvi que a ciência vai achar a solução para que Veneza não fique submersa, para que o aquecimento global não atinja níveis de catástrofe, para que possamos continuar no conforto de nossa vida enquanto assistimos ao planeta entrar em colapso pela tela de nosso celular. Os super-ricos que produziram a mutação climática acreditam que a solução é fugir daqui e colonizar Marte para perpetuar vida e privilégios, enquanto deixam para trás um planeta-resto. Alguns gostam de dizer: “Os homens e a ciência vão ser a solução para tudo isso”. Mas não: o século 20 já foi, levando com ele as ilusões humanas de potência infinita. Temos que saber que somos o problema, e não a solução.
A vingança da Terra de que fala o xamã Kopenawa já não é no futuro. Está acontecendo agora e estamos assistindo. Pelo menos 97 pessoas morreram no incêndio na ilha de Maui, no Havaí, em agosto. Nas estimativas da ONU, 4 mil pessoas morreram e outras 9 mil estão desaparecidas na Líbia após uma tempestade tropical seguida de grande enchente ter devastado a cidade de Derna, em setembro. Bairros e prédios inteiros foram arrastados para o mar enquanto as pessoas dormiam, e já não é possível resgatar tantos corpos no mesmo mar Mediterrâneo que banha Veneza. Kopenawa nos diz que, se seguirmos destruindo a floresta, quando não existir mais xamãs para segurar o céu, esse céu que enchemos de gás carbônico vai desabar sobre nossa cabeça, e aí não restará mais ninguém.
O cineasta Morzaniel Ɨramari e colegas falam ao público em Veneza com tradução simultânea em italiano. Foto: Giornate degli Autori
As chuvas que caem nas regiões mais densamente povoadas no Brasil e parte da América do Sul dependem da Amazônia. É o que chamamos “rios voadores”, a floresta transpirando e bombeando a água que precisamos para viver. Os desmatamentos e as queimadas liberam vastas porções de carbono na atmosfera, o que torna o planeta mais quente, derretendo assim as geleiras e as calotas polares. E é isso que causa o aumento do nível do mar e poderá submergir Veneza, onde não sabemos se nossos filhos e netos um dia terão a chance de pisar. O futuro de Veneza, como o da humanidade, depende da defesa da Amazônia, dos xamãs Yanomami, e de todos os seres visíveis e invisíveis que povoam a floresta e que conhecem, antes de tudo, sua beleza.
O xamã nos conta que tivemos a mesma origem dos Yanomami, mas nos separamos e esquecemos a importância da floresta, paramos de escutar nossos xapiri. Ficamos somente escutando a nós mesmos, enquanto produzimos mais e mais mercadorias e continuamos nos apaixonando por elas. É essa paixão pelas mercadorias que faz os napëpë cavarem a floresta de forma obsessiva em busca de minérios, destruir e queimá-la para retirar madeira, produzir pastos e campos de soja, enquanto seguimos hipnotizados pelas bugigangas que produzimos. É a fumaça da queima das florestas e a poluição das fábricas e dos carros que estão adoecendo o peito do céu. Na barulheira de nossas cidades, já não sabemos mais sonhar com os espíritos.
A fragilidade que vemos agora em Veneza é um emblema dos novos tempos do antropoceno. A cidade é duplamente ameaçada pelas ações do povo da mercadoria: seja pelo aumento do nível do mar devido à ação humana, o que pode levá-la a submergir, seja pelo turismo predatório: pessoas que se deslocam de várias partes do mundo para “consumir” Veneza. A pequena cidade-água, tombada como patrimônio da humanidade pela Unesco, hoje com menos de 50 mil habitantes vivendo em seu centro histórico, é invadida por 28 milhões de turistas todo ano. O turismo em massa está sempre ligado ao consumo e a altas taxas de emissão de carbono pelos voos e por outros meios de transporte.
Os canais de Veneza pelas lentes de Morzaniel Ɨramari. Foto: Ana Maria Machado
Como contraste ao povo da mercadoria que circula sob o sol escaldante pela Piazza San Marco, fixados nas fotos de seus celulares, os xamãs que aparecem no filme de Morzaniel em uma tela de cinema em Veneza escutam as vozes de cada árvore, do céu, dos ventos, de në ropë, a força da fertilidade que faz as plantas crescerem, poripoririwë, o ser da lua, e tantos outros seres que nós, não xamãs, não conseguimos enxergar e nem ao menos imaginá-los: para nós, a natureza foi transformada em commodity. Os xamãs nos mostram que existe outra forma de se relacionar com o mundo que não seja acabando com sua biodiversidade, suas águas, suas árvores. É possível ser floresta junto com a floresta.
Os povos indígenas são hoje 5% da população mundial e, juntos, protegem cerca de 80% da biodiversidade. No Brasil, as terras indígenas demarcadas são, em sua maioria, ilhas verdes cercadas por vastos pastos e grandes campos de soja. A demarcação e a proteção das terras dos povos originários, assim como o fortalecimento das leis que garantem seus direitos, são fundamentais para a garantia do futuro de todos nós – e também para o futuro de Veneza. Para nós parece mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo – ou uma mudança radical no modo de vida dos napëpë que nos permita ser outros, e não mais consumidores ávidos por converter o planeta em mercadorias, entretidos com todas as quinquilharias que produzimos para sujar a Terra.
Devemos escutar o que as águas de Veneza têm a nos dizer. E assim ter coragem e criatividade para reinventarmos a nossa forma de ser e de estar no mundo. É preciso saber ser floresta, ser montanha, ser rio, ser mar. É preciso aprender a ser semente e a se regenerar. Devemos aprender com aqueles que já viveram o fim do mundo muitas vezes, sobrevivendo a violentos processos de colonização, marcados por guerras e epidemias. O futuro, mais do que nunca, é indígena. E essa é também a única chance para a Veneza que viu os xamãs trabalharem para segurar o céu no filme de Morzaniel Ɨramari.
PARA SABER MAIS
+++O filme Urihi Haromatimapë: Curadores da Terra Floresta (legenda em inglês)
Texto e fotos: Ana Maria Machado, indigenista e tradutora
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquiria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Fluxo de edição, estilo e montagem: Viviane Zandonadi
Edição de conteúdo: Eliane Brum (semeadora e diretora de SUMAÚMA)
Terra Indígena Yanomami, aldeia Demini, Amazônia brasileira: Morzaniel entrevista o xamã Tenose para o filme Urihi Harmatimapë: Curadores da Terra Floresta. Foto: Ana Maria Machado