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Bombeiros de uma brigada noturna tentam impedir o avanço do fogo. Até 80% do desmatamento e dos incêndios na Bolívia são causados pela expansão contínua da fronteira agrícola

Desde a descoberta do fogo, nós, humanos, nos aquecemos, nos alimentamos melhor e penetramos a escuridão. O fogo é o símbolo de nossa criatividade e a base de nossas tecnologias. Mas nós também alimentamos sua força destrutiva por meio do uso de combustíveis fósseis, megaincêndios e aquecimento global irreversível.

Para meu pai, Pepe Zárate, mestre carpinteiro

Na Bolívia, é raro encontrar um bombeiro florestal que não esconda um bom bolo de coca embaixo da língua. O observador perceberá que, no meio do trabalho, ele sempre tem uma pequena bolsa à mão, da qual tira cinco ou seis folhas secas e as coloca na boca com uma pitada de bicarbonato, para que os sumos da planta liberem sua energia. O resultado é uma bola esverdeada que não para de crescer: quando os incêndios são longos e o corpo ameaça se render, os bombeiros acrescentam mais folhas de tempos em tempos, o que distende suas bochechas a ponto de tornar quase impossível compreender o que dizem. Alguns consomem a coca “à moda antiga, a folha seca e pura, nada mais”. Outros preferem as folhas de coca moídas com flavorizantes de menta, banana-da-terra, manga, maracujá, chiclete, café solúvel, refrigerante de cola e “todinhos os sabores que você possa imaginar”. “Bolear” a coca, dizem, permite que eles resistam a doze, dezoito, vinte e quatro horas seguidas de trabalho físico, quase sem água ou comida, concentrados em sufocar o fogo selvagem.

É 1º de outubro de 2022 e o Estado Plurinacional está celebrando o Dia da Árvore. Mas essa brigada de bombeiros voluntários não parece interessada em comemorar. Há vinte e três dias e vinte e três noites que eles estão entrincheirados em suas tendas de campanha, tentando salvar o que resta de uma floresta madeireira e evitar que as chamas cheguem às casas de Santa Mónica, uma comunidade indígena de cerca de 35 famílias, em Concepción, uma província na parte norte da Floresta Seca Chiquitana: com 24 milhões de hectares (84% dos quais no território da Bolívia), trata-se da maior floresta seca tropical do planeta.

Os voluntários indígenas combatem incêndios sem trajes adequados, protetores faciais ou outros equipamentos básicos de proteção

Não estamos falando do mais terrível nem do mais impressionante dos incêndios. Mas contar a história pode ajudar a entender por que a Bolívia ainda está entre os cinco países do mundo que mais desmatam e destroem suas florestas. Em 2019, no auge da crise do governo de Evo Morales, os incêndios na Amazônia ganharam as manchetes da imprensa internacional: 6 milhões de hectares (4% da superfície do país andino) foram arrasados por chaqueos, ou queimadas, em Santa Cruz de la Sierra, o principal departamento pecuarista boliviano. Pouco tempo depois, em 2020 e 2021, na mesma região, o mesmo tipo de incêndio (megaincêndios ou incêndios de sexta geração, cujas emissões de calor e fumaça podem modificar microclimas) consumiu florestas de área equivalente a 100 cidades do tamanho de Nova York, o território de cerca de 400 comunidades.

Santa Mónica é um dos muitos cantos da Bolívia que estão voltando a arder.

Enquanto em cidades vizinhas ocorrem pelo menos alguns temporais, os moradores daqui juram que não cai uma única gota do céu há três meses. E agora, enquanto o sol poente ganha um matiz vermelho por causa das nuvens de fumaça que nos cercam, o comandante Fabio Poma, bombeiro florestal do Governo Departamental de Santa Cruz, verifica um mapa de satélite em seu telefone. No gráfico verde, que é atualizado periodicamente com novos dados meteorológicos, pontos laranja (“focos de queima”) cercam Santa Mónica, como uma cobra de fogo encurralando sua presa.

“Temos que acabar com isso de uma vez por todas”, adverte Poma, um homem atarracado de 34 anos, com olhos chineses e um corte de cabelo militar, natural de Santa Mónica. “Agorinha, ou o vento norte vai nos ferrar.”

“Camba de nascimento, mas Colla de sangue” (sua mãe é de Cochabamba e seu pai de Oruro), o comandante Poma passou uma década apagando incêndios na região e sabe que somente à noite, quando a temperatura cai, ele tem como lutar. Há várias frentes que precisam ser cobertas e, por dispor de poucos bombeiros profissionais, ele organizou guardas de incêndio que se revezam em turnos de doze horas. Os adultos da comunidade também participam da guarda.

“Mas as pessoas já estão absolutamente exaustas, alguns voluntários não querem ir trabalhar, e por isso recorrem a uma coquinha para se animar novamente.”

Poma não usa coca nem fuma quando está em serviço, “as regras me proíbem de consumir qualquer substância”; precisa cuidar de seus homens. Para isso, na calada da noite, vamos de caminhonete até o cruzamento de duas trilhas, onde um grupo de moradores está tentando apagar o fogo há horas, com tanques portáteis que levam nas costas. Outros usam motosserras para cortar os troncos em chamas e enterrar as brasas que penetraram nas raízes das árvores.

Diferentemente dos bombeiros florestais de instituições mais estabelecidas, como a Direção de Recursos Naturais de Santa Cruz, a Fundação de Busca e Resgate ou a Guardiã (com seus uniformes, botas e mochilas certificadas), que atendem a esse tipo de emergência, os voluntários indígenas combatem o fogo sem trajes adequados, respiradores faciais ou qualquer outro artefato básico para protegê-los.

No altar de um voluntário, símbolos religiosos e fotos de família: ele acredita que os bombeiros são capazes de deter o fogo, mas ‘só Deus pode extingui-lo com a chuva’

“Viemos sem nada, só com os sapatos e as roupas de casa”, disse Alberto Paine, 45 anos, pedreiro e morador nas cercanias de Santa Mónica, que veio com sua sobrinha adolescente para ajudar a avançar mais rápido no combate ao incêndio.

Apesar da escuridão e da fumaça espessa, Paine e seus vizinhos conseguem realizar o trabalho graças às pequenas lanternas que portam na testa. Somente por volta da meia-noite é que eles decidem se sentar em troncos caídos para observar as chamas. Alguns mascam coca ou acendem cigarros. Outros bebem goles de álcool de farmácia misturado com água, enquanto ouvem cúmbias de Climaco Sarmiento em um telefone celular. Por causa dos bolos de coca em suas bochechas, entendo pouco o que dizem. Mas em seus rostos manchados de cinzas há olhares de fadiga acumulada, que nem a coca nem as boas notícias do comandante Poma conseguem dissipar: de acordo com o boletim meteorológico, a chuva finalmente cairá, em cerca de três dias.

Ninguém parece se entusiasmar. Eles sabem que amanhã, quando o sol se abater sobre suas cabeças e o vento norte voltar a soprar com força, o fogo que acabaram de apagar ressurgirá. Mais perto ou mais longe, tanto faz. Não haverá remédio a não ser começar todo o trabalho outra vez.

O vermelho mais vermelho (e a vontade de chorar)

Há cerca de 400 mil anos – um piscar de olhos, em escala geológica – os primeiros seres humanos dominaram o fogo: aprenderam, entre outras coisas, a fazer fogueiras para se manter aquecidos e protegidos; aprenderam a cozinhar e a ganhar mais calorias do que seria o caso se comessem alimentos crus; e começaram a se socializar até tarde da noite, o que talvez tenha levado às primeiras histórias contadas sobre o mundo que habitamos e os mundos que imaginamos.

Mitos como o do titã Prometeu (cuja façanha tornou possível “todas as artes dos homens”) contam de que maneira, depois de ser arrebatado aos deuses, o fogo se tornou o gatilho para a rebeldia e a criatividade humanas. Assim, diferentes disciplinas do conhecimento reconhecem seu poder para além das metáforas: o fogo está na base de nossas tecnologias – da agricultura à exploração espacial – e, ao mesmo tempo, é percebido hoje como uma força destrutiva que saiu de controle por meio do uso de combustíveis fósseis, megaincêndios e aquecimento global irreversível.

“Se no passado a propagação do gelo ajudou o planeta a entrar em uma era glacial, agora nossa combustão desenfreada está impulsionando a Terra para uma era de fogo”, escreveu Stephen J. Pyne, professor de história ambiental na Universidade Estadual do Arizona, bombeiro experiente e criador de uma classificação precisa para esta era.

“Criamos um piroceno. E agora temos que viver nele.”

O carpinteiro Juan José Leigue não leu o professor Pyne nem está atualizado sobre as últimas pesquisas quanto à propagação de incêndios no planeta, mas encontrou uma maneira prática de alertar seus vizinhos sobre o perigo iminente de incêndios na área: na entrada de Santa Mónica, ele colocou uma placa de madeira chamando a atenção para o risco de incêndio na comunidade. É um semicírculo que, da direita para a esquerda, vai do verde (baixo risco) ao amarelo (alto risco) e ao vermelho (risco extremo).

“Estamos agora no vermelho mais vermelho”, me disse Leigue, o chefe encarregado da resposta aos incêndios em Santa Mónica. “Tudo tem cheiro de queimado. Dá vontade de chorar, de verdade.”

Leigue veio para essa floresta há 47 anos, com sua avó e outros homens e mulheres, com quem fundou Santa Mónica. Ele era só um menino, que carregava as panelas e conduzia o único burro da família. “Era lindo naquela época, verde, fresco, ar purinho”, relembra o mestre carpinteiro, enquanto caminhamos entre as cicatrizes deixadas pelo fogo nas terras de Cachuela, uma das mais de 200 comunidades interculturais (com uma população majoritariamente Aimará ou Colla) que foram se estabelecendo na Chiquitanía, para trabalhar nas terras que o governo de Evo Morales confiscou dos grandes criadores de gado. Segundo os bombeiros, foi lá que o fogo se originou.

Quando o incêndio começou em Cachuela, Leigue estava em Santa Mónica, participando de uma festa da santa padroeira. De repente, eles viram uma coluna de fumaça subindo a alguns quilômetros de distância. Ninguém se alarmou, até que, alguns dias depois, as chamas atingiram fazendas e pastos, e a fumaça se infiltrou nas casas.

“A fumaceira que vinha do norte e o céu que ardia com as cinzas que caíam eram insuportáveis, e por isso as luzes dos postes foram acesas e o fogo cresceu rapidinho e, quando amanheceu, com esse calor, era quase impossível apagá-lo.” Leigue se lembra de ver com impotência a maneira pela qual uma onda de fogo consumiu, em questão de horas, dezenas de exemplares de aroeira, sibipiruna, cedro, ipê e araribá-amarelo, entre outras árvores ancestrais, a matéria-prima das mesas e cadeiras que carpinteiros como ele fazem para sustentar suas famílias.

Árvore perto da comunidade de Santa Mónica, na Bolívia: quando o fogo atinge as copas mais altas, o vento dispersa as brasas e acelera a propagação do incêndio

Basta colocar um drone em voo na estrada para Cachuela para ver esse cenário pós-nuclear: um céu acinzentado pela fumaça, grama transformada em cinzas, esquilos florestais escapando entre árvores mortas, tatus e cobras carbonizados, cicatrizes deixadas pelas chamas.

“Não sobrou nem mesmo um telhado que não tenha sido queimado”, me disse Carmelo Mercado, 59 anos, com a boca cheia de folhas de coca, na cabana de que estava tomando conta. Ele parecia ser o único habitante de toda a comunidade. “Mas eu não podia fazer nada porque estava sozinho e não há água aqui há três semanas. É por isso que fiquei para cuidar desta casa para meu chefe.”

A depender de a quem a pergunta seja feita, os motivos de um incêndio nessa parte da Bolívia podem ser múltiplos. Os membros de comunidades indígenas que entrevistei ao longo desses dias me disseram que foram os povos interculturais que, ao iniciar queimadas, não mediram a força do vento, e o fogo escapou para a floresta. Há também aqueles que afirmam que os culpados são caçadores que deixam suas fogueiras acesas, ou fumantes imprudentes que jogam bitucas de cigarro na estrada. Os interculturais, por outro lado, acusam os indígenas de incendiar as florestas para exigir alguma ajuda – comida, água, roupas, ferramentas – do governo.

“Para ser franco, a falta de conscientização este ano veio de todos, foi generalizada: setor privado, indígenas, interculturais”, diz o bombeiro florestal Daniel Velásquez, subprefeito da província de Ñuflo de Cháves, à qual pertence Santa Mónica. “Para que isso mude, a lei precisa mudar. Enquanto não mudarmos a parte regulatória, a parte punitiva, eles continuarão queimando. Porque, se não mudarmos, ninguém poderá ser responsabilizado por coisa alguma.”

A Bolívia é o país da região com a menor multa como principal medida contra incêndios e desmatamento ilegais: enquanto no Brasil, também afetado pelos recentes megaincêndios, a multa por hectare queimado ilegalmente é de 925 dólares, na Bolívia é de 0,2 centavos de dólar.

O líder de uma brigada voluntária acompanhada pela reportagem do ‘Colapso’ remove a manta térmica que deveria protegê-lo: missão de risco

“É uma palhaçada, uma piada!”, me disse o subprefeito Velásquez certa tarde, quando saímos para monitorar o incêndio em Santa Mónica. “Estamos apagando o fogo e essas pessoas estão provocando incêndios. Estamos gastando dinheiro que não temos, e recompensar esses imbecis que provocam incêndios não está certo. É por isso que ordenei que ninguém receba uma única cebola.”

Ele me disse que recentemente, em Cachuela, viu um vizinho queimando seu chaco. O fogo escapou ao controle e os moradores tiveram que ir ajudá-lo. “Resistimos por duas semanas. Batalhamos muito. Apagamos o fogo, mas sabe o que aconteceu? Ele ateou de novo. Quase lhe dei uns pontapés.”

Partida de Cachuela, a origem do incêndio

5 de outubro, 14h07. Na estrada de terra, oferecemos carona a uma senhora com suas bolsas do mercado. Seu nome é Antonia Aricoma. Ela é de Potosí. Tem 60 anos e quatro filhos. Mora em uma comunidade intercultural chamada Villa Hermosa. Conversamos um pouco. Está começando a chover. No rádio, uma música de Maná.

“Olha, meu jovem, nós sabemos como queimar. Tivemos problemas com queimadas em nossas terras, antes? Nós sabemos como fazer. Primeiro limpamos o terreno, depois trabalhamos com a serra, secamos a área e deixamos a vala limpa. Se o fogo ficar fora de controle, nós o apagamos com terra e água. Nunca acontecem problemas.

“Dizem por aqui que os povos interculturais são os culpados pelos incêndios, que eles vieram para tomar as terras dos moradores de Santa Cruz, dos Camba.

“Estamos aqui por causa de Evo. Quando ele estava no poder, ajudou muito. No altiplano quase não há terra, há apenas o suficiente para algumas pessoas. Disseram-me que havia terras aqui e vim para cá há seis anos. Eu queria meu pedacinho de terra, isso me favoreceu.

“Agora, de acordo com as normas, é proibido queimar. Não há chuva. Tudo está muito seco. Mas ainda há incêndios.

“Olha, às vezes eu me sinto mal, porque um homem erra e todos pagam. Às vezes, sei que um de meus colegas já fez seu chaqueo [queimada], e não quer mais queimar. Mas outro acende o cigarro e o joga fora e põe fogo em tudo. Se fosse responsável, ele apagaria a bituca do cigarro ao jogá-la fora, e nada aconteceria. Porque, lhe digo, se eu soubesse que foi fulano de tal, se fosse esse o caso, eu ligaria para o vice-governador, tenho o número dele.

“E por que você acha que, em Santa Cruz, dizem que são as pessoas interculturais que queimam sem controle?

“O camponês, veja bem, precisa encontrar uma maneira de sobreviver. E algumas pessoas não gostam disso. Não somos Chiquitano, não somos Camba, mas também somos bolivianos, ou somos de outro país por sermos Aimará?”

A regra é nunca subestimar a fera

Na linguagem dos bombeiros florestais, os incêndios são frequentemente descritos como animais selvagens que nascem, crescem, se reproduzem e morrem. Um incêndio florestal tem uma “cabeça” (o foco principal do fogo e a parte maior), “braços” e “dedos” que, pela ação dos ventos, se expandem de um lado para outro, deixam cicatrizes negras no chão ou carregam cinzas incandescentes pela copa das árvores, tornando sua voracidade imprevisível. A regra para um bombeiro florestal é nunca subestimar a fera.

O treinamento ensina que a gravidade de um incêndio florestal depende do fator 30-30-30: se a temperatura ambiente for superior a 30 graus Celsius, a umidade for inferior a 30% e a velocidade do vento for superior a 30 quilômetros por hora “estamos realmente ferrados”, adverte o comandante Poma. Mas, para ele, de todas essas variáveis, a mais perigosa é o vento.

Nessa área da Chiquitanía, especialmente nas terras de Santa Mónica, há um “vento ruim” e um “vento bom”. O primeiro, o vento norte, é o que está soprando agora: ele carrega e espalha as cinzas incandescentes e as faz cair como uma chuva negra sobre as fazendas e as casas da comunidade. Depois, há o sul, o bom, que dispersa as chamas e quase sempre é acompanhado de chuva. O vento sul, infelizmente, não aparece há dias e, quando surge, é apenas por um momento, porque o norte o derrota imediatamente.

Mas Poma tem mais medo de tempestades de fogo ou incêndios de sexta geração. Incêndios catastróficos que geram pirocúmulos, um tipo de nuvem de fogo que cria redemoinhos de ar quente capazes de absorver a umidade da terra e que avançam a mais de 1 metro por segundo. À medida que se movem em ritmo acelerado, eles incendeiam tudo o que está seco e deixam a floresta em brasa, “como metal derretido”.

“É um monstro, como se tivesse vida própria”, diz Poma, “e você não pode detê-lo com extintores de incêndio, pás ou qualquer outra coisa. Só resta fugir correndo.” É por isso que, segundo o comandante, o trabalho feito por ele não é para os distraídos ou, pior ainda, para as pessoas com “complexo de herói”. Ele conta que viu muita gente assim em 2019, quando ônibus lotados de jovens voluntários vieram das cidades para a Chiquitanía a fim de “ajudar” ou, como diz, para fazer “turismo de desastre”.

Em 2020, a Bolívia foi o segundo país da América Latina que mais derrubou e queimou florestas tropicais para atividades agroextrativistas (depois do Brasil), segundo o Global Forest Watch

“Eles chegaram a Santa Mónica e nós já estávamos aqui havia um mês, no fogo. A polícia e o Exército vieram e não conseguiram merda alguma. Chegamos e encontramos tudo uma bagunça, não havia organização e os ‘voluntários’ praticamente tomaram o acampamento. O interessante é que, quando os víamos, eles estavam com as roupas limpinhas, as mochilas florestais intactas, era como se precisassem apagar um foguinho e pronto. Uma cagada total.” Até que, em um desses dias, Poma chegou com seus homens depois de um turno de trabalho do serviço de guarda.

“Os voluntários comeram toda a comida dos bombeiros, tudo. Aí perdi a paciência, com toda a adrenalina que eu tinha, estava lutando fazia oito horas contra chamas de 20 metros de altura, sem comer direito, sem água, e por isso expulsei todos eles. E eles foram embora, alguns deles estavam meio bêbados, tinham até cheirado nas barracas, enfim, foi uma esbórnia total.”

Poma recorda que os voluntários ficaram irritados, que o criticaram nas redes sociais, mas ele não se importou, porque já havia informações de pelo menos seis pessoas mortas nos incêndios e, em Santa Mónica, as coisas estavam tão sérias que eles tiveram que evacuar as crianças e os velhos nas primeiras horas da manhã para uma casa comunitária em Concepción. Desde então, e até agora, apenas a brigada de incêndios florestais pôde permanecer em Santa Mónica para combater o fogo, mas sem conseguir debelá-lo ainda. Para isso, é preciso esperar pelas temperaturas frias da noite ou pela chuva.

“Ou esperar por um milagre”, diz o comandante. Para ele, dadas as circunstâncias, a chuva e o milagre são mais ou menos a mesma coisa.

Nunca vire as costas para o fogo, meu filho

Dizem que o erro do menino, o erro que quase o tornou uma presa fácil para a onça, foi ficar de costas para a floresta em chamas. “Nunca vire as costas para o fogo, meu filho”, foi a instrução de seu pai, um bombeiro florestal veterano. Mas a exaustão dos trabalhos daquela tarde – cortar arbustos, limpar trilhas, regar troncos em chamas – fez com que suas pernas de principiante se rendessem. Ele tirou o respirador facial, sentou-se à beira da estrada, até que seu pai gritou “Lucas, levante-se!”, e foi só então que ele viu os olhos do felino brilhando à luz das tochas, cerca de 10 metros atrás dele.

7 de outubro. Dia 30 do incêndio em Santa Mónica.

O vento sul soprou esta manhã e trouxe um temporal. As chamas parecem ter recuado, e tudo está começando a parecer mais calmo, exceto pelo aparecimento da onça-pintada.

Os voluntários já haviam me falado sobre o felino na noite anterior. No meio da trilha que estavam guardando, eles juram que sentiram os passos do animal. Por isso, Poma decidiu suspender as operações naquele setor até que o felino seja capturado. Hoje à tarde, o pessoal do resgate de animais chegará com suas jaulas.

É uma obviedade dizer que os incêndios não afetam apenas os seres humanos. É preciso pensar também nos efeitos sobre os animais e as plantas, no momento do incêndio e por muitos anos depois. Os animais tendem a reagir ao fogo de duas maneiras: fugindo ou se escondendo. Mas o número de animais mortos depois de um incêndio será maior.

O voluntário da brigada médica da comunidade de Santa Mónica, na Bolívia, brinca com um periquito resgatado dos incêndios por um bombeiro

Só em 2019, de acordo com dados do Observatório do Bosque Seco Chiquitano, 47% do habitat das onças-pintadas foi queimado pelo menos uma vez durante o ano. Isso é alarmante, considerando que, em caso de incêndios como esses, os animais grandes tendem a se mover rapidamente para escapar do fogo, enquanto os animais menores não conseguem fazê-lo.

O observatório estimou que, em 2019, o ano do fogo, cerca de 5,9 milhões de mamíferos (de aproximadamente 48 espécies, como tamanduás, porcos-do-mato, pequenos felinos) foram mortos diretamente pelos incêndios. A maioria deles vivia em áreas protegidas, com números por espécie variando de quatro espécimes individuais de onça-pintada a 3,6 milhões de roedores. Estamos falando de animais que, diante do perigo das chamas, rastejam para suas tocas ou se escondem, enterrando-se sob as folhas da floresta, e que às vezes podem sobreviver. Alguns não conseguem. Baratas carbonizadas e outros insetos são encontrados com frequência na superfície queimada. Determinados anfíbios e répteis, especialmente cobras e lagartos, costumam ser motivo de preocupação: não apenas porque podem morrer em decorrência do fogo, mas também pela destruição, ainda que temporária, de seu habitat e meio de vida. Mesmo quando escapam, morrem mais tarde de fome, sede, nas mãos de caçadores ou devido à competição com outras espécies que buscam essencialmente a mesma coisa: comida e água.

No dia seguinte ao aparecimento da onça, depois de uma inspeção mais detalhada, e retornando à parte da estrada onde o felino tinha sido visto, encontramos rastros: alguns maiores, outros médios e outros pequenos.

Talvez papai, mamãe, filhote de onça. Não era um felino tentando comer os voluntários, os socorristas me dirão. Era uma família fugindo do fogo, defendendo sua casa dos estranhos, que somos nós.

A Disneylândia dos pecuaristas

A cada ano, a ExpoCruz vive seu dia de encerramento com a algazarra do desperdício: naquele sábado de setembro, aniversário de Santa Cruz de la Sierra, a feira mais importante da cidade parece um parque de diversões para os amantes do gado. A Disneylândia dos pecuaristas.

Venda de animais bovinos na feira ExpoCruz, o evento de agronegócio mais importante da cidade de Santa Cruz de la Sierra, na Bolívia

O reggaeton e a cúmbia tocam em máximo volume e se misturam em diferentes cantos da esplanada: marcam o ritmo do rio de pessoas que enchem as lanchonetes e os bares de luzes estridentes, ou visitam, curiosas, os estandes dos bancos agrícolas e o showroom da Yamaha com o mais recente modelo de trator, ou param nos estandes da Marlboro, onde as recepcionistas, muito bem maquiadas, distribuem charutos e chaveiros sem nunca perder o sorriso.

Mas a seção mais popular, aquela que todos nós viemos ver, é a que abriga os zebus.

Nos cercados coroados por placas fluorescentes, há pais passeando com seus filhos, observando e tocando os animais corcovados que descansam sobre pilhas de serragem. Zebus pesando quase 1 tonelada, com pele marmorizada, marrom e perolada, que podem custar o equivalente a 80 salários mínimos bolivianos.

“Pode tocar na testa dele, meu amor, ele não vai fazer nada com você.”

E lá vai o menino com o balão vermelho tocar a orelha de um zebu, identificado pela etiqueta número 394. E lá vem outra jovem de óculos tirar uma selfie com o bezerro 455. E, mais adiante, um rapaz dá um tapinha no traseiro do bezerro 532. E os animais continuam imperturbáveis, como se indiferentes à fugaz ternura dos seres humanos.

Os espécimes, é claro, não são criados para serem comidos. São animais geneticamente melhorados para que a grande massa do gado, ou seja, seus descendentes e os descendentes de seus descendentes, forneça a melhor carne para exportação. Isso é explicado pelos criadores de zebus, como as estâncias Chorobí, Caldera Nesterlina, Nelorí, Cabaña Guajojó: membros da Asociación Boliviana de Criadores; especialistas em “sêmen, embriões, matrizes e reprodutores”. Um dos criadores, Don Vladimir, me explicou que os filhotes também existem para vencer competições. Como Mr. Boyka – 22 meses de idade, raça Brahman, pele chocolate –, que este ano levou o título de Grande Campeão de toda a exposição.

“Filho de campeões, o Boyka. Excelente genética”, sorri Don Vladimir, orgulhoso, enquanto troca a serragem do macho vencedor, encharcada de urina. “O jurado disse que ele tinha uma boa corcunda e boas bolas.”

Santa Cruz puxa o grande trator do dinheiro na Bolívia, e a pecuária é o seu combustível: esse departamento, sozinho, concentra 44% do rebanho bovino nacional, 4,4 milhões de cabeças, que sustentam a exportação de carne bovina para Peru, Equador, República do Congo, Hong Kong, Vietnã e, acima de tudo, China: a potência asiática consome 85% de toda a produção de carne da Bolívia.

Isso é boa notícia para o Produto Interno Bruto (PIB), mas sempre há os danos colaterais, os impactos do setor agropecuário sobre a terra, a água e o ar. Porque, embora a Bolívia tenha conseguido fazer com que seus embarques de carne brilhem nos mercados chineses, nos últimos três anos – desde o início das exportações para a China em 2019 –, o número de megaincêndios florestais, a perda de biodiversidade, a poluição da água e as emissões de gases causadores do efeito estufa também dispararam, como vimos, o que só adiciona combustível ao grande incêndio da crise do clima.

Naquele sábado de setembro, aniversário de Santa Cruz de La Sierra, a ExpoCruz parecia um parque de diversões para pecuaristas. A festa terminou em ‘algazarra e desperdício’

Vamos começar com um dado bem conhecido. De acordo com a Organização de Agricultura e Alimentos das Nações Unidas, são necessários mais de 15 mil litros de água doce para produzir 1 quilo de carne bovina. Quinze mil litros que um zebu (Mr. Boyka, por exemplo) consumirá durante toda a sua vida, incluindo a água usada para produzir a forragem e os cereais que ele agora rumina. Vamos fazer as contas: 15 mil litros de água para 4,4 milhões de Boykas. Em um único departamento. Convidamos você a calcular o valor para todo o país.

Há também as árvores mortas por aço e fogo. A Autoridade de Fiscalização e Controle Social de Bosques e Terra indica que até 80% do desmatamento e dos incêndios na Bolívia são causados principalmente pela “expansão contínua da fronteira agrícola, alocação de terras pelo Inra [ou seja, o Estado] em favor de comunidades camponesas, interculturais e indígenas, e as novas políticas econômicas implementadas para garantir a segurança alimentar do país”.

Em 2020, a Bolívia foi o país com a terceira maior perda de florestas tropicais primárias (depois do Brasil e do Congo) e o segundo na América Latina em termos de florestas usadas para atividades agroextrativistas, adverte a Global Forest Watch. Oitenta e oito por cento desses desmatamentos autorizados ocorreram em Santa Cruz e 75% dessas derrubadas e queimadas foram feitas em propriedades privadas. Quem quiser saber mais poderá ler as páginas e páginas de dados que registram os danos, mas uma imagem é suficiente para revelar a faca de dois gumes do progresso da pecuária: enquanto em agosto de 2019, o ano do fogo, empresários e Evo Morales aplaudiam o primeiro carregamento de 48 toneladas de carne bovina para a China, a floresta seca de Chiquitano queimava havia duas semanas. E continuaria a queimar meses depois, até se tornar uma onda incandescente que deixaria milhares de hectares de pasto e floresta reduzidos a fumaça e cinzas.

“Sim, bem, o que se pode fazer?”, diz Don Vladimir, um criador de zebus que espera que um dia um de seus filhos economize dinheiro suficiente para ter seu próprio gado. “No momento, precisamos tomar cuidado com as queimadas, mas temos que continuar. Caso contrário, como você vê, tudo isso acabará.”

Os bombeiros do futuro com suas latas nas mãos

Naquela noite, quando cheguei à ExpoCruz, antes de ir atrás do incêndio em Santa Mónica, encontrei um casal de bombeiros voluntários na entrada. Joel e Matias, um com 15 anos e o outro com 16: ambos uniformizados com calças cáqui e camisas amarelas. Seus capacetes, da cor do sol, tinham no centro um desenho de cabeça de onça.

Os dois adolescentes lembravam árvores que ainda não atingiram sua altura máxima, e pareciam um pouco cansados, mas também esperançosos, carregando latas para coletar doações.

Eles me disseram que ainda não haviam enfrentado um incêndio, mas que pretendiam apagar um deles em breve, assim que terminassem o treinamento. Tudo dependia de a caridade das pessoas não deixar suas latas vazias.

“Em casa me perguntam por que quero combater incêndios, se não me pagam. Mas é o que eu nasci para fazer, é meu dever, não é?”

Várias horas depois, quando saí da feira, eu os vi novamente. As pessoas já estavam voltando para casa, carregadas de sacolas, comida, balões coloridos, com a música ainda tocando lá dentro. Enquanto isso, os bombeiros do futuro continuavam parados na mesma esquina, esperando por alguma coisa, com suas latas nas mãos.

Joseph Zárate, jornalista e editor peruano, recebeu os prêmios Ortega y Gasset 2016 e Gabriel García Márquez 2018. É autor de Guerras del Interior (Debate, 2018), livro de não ficção sobre conflitos socioambientais na Amazônia e nos Andes. Ele vive em Lima.

Esta reportagem faz parte do projeto Colapso, da Dromómanos, uma produtora de jornalismo independente sediada no México.


Sobre a Dromómanos
A Dromómanos é uma produtora mexicana de jornalismo independente que investiga, treina e conduz experiências para contar a história da América Latina, com jornalistas de toda a região. O projeto nasceu em 2011, quando seus fundadores, Alejandra S. Inzunza e José Luis Pardo Veiras, viajaram pelo continente a bordo de um Volkswagen Pointer de terceira mão, tentando criar um novo modelo jornalístico de cobertura continental e documentando, com mais de 20 reportagens longas e o livro Narcoamérica, a maneira pela qual o tráfico de drogas afeta a vida de nossas sociedades em toda a América Latina. Nesses doze anos, a Dromómanos trabalhou com mais de 100 colaboradores e se aliou a 60 meios de comunicação nacionais e internacionais para narrar as questões mais urgentes para os latino-americanos, como a violência, a crise do clima, o autoritarismo, a migração e a corrupção.

Sobre o projeto Colapso
O que acontece quando a força da natureza encontra as misérias da humanidade? Em poucos lugares é possível obter uma resposta mais contundente a essa pergunta sobre nosso presente e futuro do que na América Latina, a região mais desigual e uma das mais biodiversas do mundo. Colapso se aprofunda nas selvas, montanhas, ilhas, florestas, desertos, oceanos e cidades da região para contar, de perto, a história dos sintomas e das consequências da crise do clima.

Texto: Joseph Zárate
Fotos:
Manuel Seoane
Checagem:
Dromómanos
Revisão ortográfica (português): Valquiria Della Pozza
Tradução para o português: Paulo Migliacci
Tradução para o inglês: Charlotte Coombe
Edição visual e montagem de página: Viviane Zandonadi, Lela Beltrão e Érica Saboya

Placa na entrada de uma área de manejo florestal em Santa Mónica, na Bolívia, ameaçada por um foco de incêndio nos arredores

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