Davi Kopenawa, o líder, xamã e também embaixador dos Yanomami e de sua luta pela “terra- floresta”, já conhecia o Rio de Janeiro. Mas, nas vezes em que tinha vindo à cidade para exposições, palestras ou homenagens, nunca passou pela cabeça de seus anfitriões o convidarem para ir a uma favela. Essas comunidades urbanas, a maioria delas em morros, formadas por trabalhadores negros, ex-escravizados, e depois por levas de migrantes, sobretudo do Nordeste, não têm acesso às moradias do “asfalto”, o Rio dos mais ricos, onde costumam circular os visitantes. Por isso, a visita ao Morro do Salgueiro, berço da Acadêmicos do Salgueiro, a escola de samba carioca que homenageará os Yanomami no desfile deste ano, foi para Davi uma revelação.
O indigenista Marcos Wesley, do Instituto Socioambiental, que trabalha há 27 anos com os Yanomami e acompanhava Davi na visita, em meados de outubro de 2023, relata: “Ele falou que algumas vezes o levaram para algum lugar turístico do Rio, mas que foi a primeira vez que ele conheceu o povo que construiu a cidade do Rio de Janeiro”. Quem já perambulou com Davi por cidades pelo mundo sabe que as observações dele são sempre agudas e muito surpreendentes, porque partem de uma outra experiência do viver. Ao pisar numa favela pela primeira vez, Davi comentou: “Eles construíram, né, depois eles foram empurrados para cá, e aqui só tem pedra, não tem onde plantar, é muita injustiça”. Em reportagem feita pela TV Globo na época, o xamã destacou: “Eu estou emocionado, muito mesmo, porque eu nunca vi uma pessoa que mora num lugar desse, acima da pedra. Para mim, na minha cultura Yanomami, as pedras não vão proteger”.
Intercâmbio de ancestralidades: Davi Kopenawa e Tia Glorinha conversam sobre plantas de cura. Foto: Ewerton Pereira
No morro, Davi Kopenawa foi recebido no Caxambu, centro cultural que guarda as tradições afro-brasileiras da comunidade, a mais conhecida delas o jongo, uma dança ao som de tambores. Lá estavam as matriarcas salgueirenses, entre elas Maria da Glória Lopes de Carvalho, a Tia Glorinha, 77 anos, há 15 presidenta da Ala das Baianas da escola, na qual desfila desde 1963. Ela e Davi conversaram sobre ervas usadas em curas, já que a mãe de Glorinha, que se instalou no Salgueiro vinda de Minas Gerais, era rezadeira e lhe transmitiu seu conhecimento. “Ele queria saber como cada erva era chamada aqui e se batia com as ervas de lá, que têm nome diferente”, conta Tia Glorinha. “Ele ficou muito encantado e eu também fiquei. Nunca imaginei ele ir lá na minha comunidade.” A Marcos Wesley, Davi disse que as senhoras do Caxambu o fizeram lembrar de suas tias.
A visita ao morro selou uma aproximação cautelosa, mas ao final criativa e criadora, entre o xamã que mora na casa coletiva de Watoriki, aos pés da Serra do Vento, na divisa entre Amazonas e Roraima, e as lideranças de uma das escolas de samba mais tradicionais do Rio. Os primeiros contatos foram em março de 2023, logo depois que o Salgueiro anunciou o tema do enredo, Hutukara, o nome dado pelos xamãs Yanomami ao céu que caiu em tempos ancestrais, formando a terra atual – também nome da mais conhecida associação na Terra Indígena, presidida pelo próprio Davi.
Davi fez apenas dois pedidos: que o Salgueiro não retratasse um Indígena genérico, e sim os Yanomami, com seus traços, pinturas, costumes e visão de mundo, e que os Yanomami não fossem tratados como sofredores, mas como um povo resistente, de grande conhecimento e sabedoria. “Ele falou: ‘A gente vai lutar o tempo inteiro’”, lembra o jornalista Igor Ricardo, o “enredista” do Salgueiro – a pessoa que escreve a sinopse a partir da qual são compostos o samba da escola e também o texto entregue aos jurados do desfile no Sambódromo ou na “Avenida”, como preferem os cariocas.
Afro-Yanomami: ala sobre cotidiano do povo indígena no ensaio no Sambódromo. Foto: Ana Carolina Fernandes/Sumaúma
Igor e Edson Pereira, o carnavalesco do Salgueiro, responsável pelo desenho das fantasias e dos carros alegóricos, se encontraram pela primeira vez com Davi Kopenawa na sede paulistana do Instituto Moreira Salles, no início de abril de 2023. Queriam sua bênção para o enredo e convidá-lo para vir ao desfile, na noite de 11 de fevereiro. O encontro começou tenso: alguém da equipe do Salgueiro estava com joias de ouro, símbolo do garimpo que devasta o território Yanomami e que levou seu povo ao genocídio, matando só em 11 meses de 2023 308 pessoas, mais da metade delas crianças com menos de 5 anos, a maioria por causas evitáveis.
Diante do ouro no pescoço, nos braços e nos dedos, Davi fechou a cara. O enredista da Salgueiro conta que o líder Yanomami não deu bom-dia nem boa-noite. E disse à pessoa que ostentava as joias: “Você sabe que isso é a morte para mim, né?”. Só aos poucos a conversa foi destravando. Igor disse a ele que estava lendo A Queda do Céu, livro que é fruto de 93 horas de conversas gravadas entre Davi e o antropólogo Bruce Albert, além de décadas de convivência. Davi respondeu que já era “um bom começo”.
A amizade, por outras pessoas humanas ou pela floresta e seus seres, tem grande valor para os Yanomami. Eles não se esquecem, porém, das aproximações falsamente amistosas feitas pelos napëpë (não indígenas, brancos). Em A Queda do Céu, Davi Kopenawa diz que deseja que suas palavras penetrem na mente das novas gerações de napëpë, que dessa forma “terão muito mais amizade pela floresta”. No curso dessa conversa de mais de três horas com os salgueirenses, em São Paulo, Davi perguntou direto, como é seu costume: “Vocês querem ser nossos amigos, é isso?”. Só ao final, o xamã autorizou: “Agora vocês já podem ir na minha casa”.
A viagem ao Demini, região de Davi na Terra Indígena Yanomami, não aconteceu. Mas Davi encarregou o indigenista Marcos Wesley de prover Igor e Edson de materiais sobre os Yanomami e de ser seu intermediário para esclarecer as muitas dúvidas. “Esse encontro com o Davi causou uma mudança de chave muito grande na nossa cabeça”, confessa o enredista do Salgueiro.
Povo da pedra: ao conhecer a favela, Davi Kopenawa espanta-se com a insegurança para onde foram empurrados os ‘construtores da cidade’. Foto: Ewerton Pereira
Resistência, folclore e jogo do bicho
O primeiro desfile de escolas de samba do Rio aconteceu em 1932, mas enredos sobre povos indígenas passaram a ser mais frequentes a partir de 1970, segundo o historiador Luiz Antonio Simas, autor de livros sobre o Carnaval, a cidade e as religiões afro-brasileiras. Naquele ano, a Portela foi campeã, com as Lendas e Mistérios da Amazônia. Como a maioria dos enredos que se seguiram, este falava dos mitos indígenas sem vinculá-los às lutas pela terra e por voz política. “Muitos foram encenados na lógica folclórica de uma literatura do Brasil que romantizou os Indígenas como ‘bons selvagens’, naqueles mitos de construção da nação”, analisa Mauro Cordeiro, estudioso do Carnaval que nasceu no Morro do Andaraí, próximo ao do Salgueiro, e frequenta a escola desde criança, quando seu pai era diretor da agremiação.
Mauro, professor e doutorando em Antropologia, lembra que foi um carnavalesco negro, Fernando Pinto (1945-1987), quem primeiro levou as reivindicações dos povos originários às grandes escolas do Rio. Em 1983, antes que a Constituição de 1988 sacramentasse os direitos que o Congresso hoje quer derrubar, Fernando Pinto criou na Mocidade Independente de Padre Miguel o enredo Como Era Verde Meu Xingu. Já em 2017, quando a extrema direita crescia na política, o cacique Raoni Metuktire, referência maior da luta indígena no Brasil, participou do desfile da Imperatriz Leopoldinense com o tema Xingu, o Clamor que Vem da Floresta.
Na época, associações do agronegócio se sentiram retratadas pelo “belo monstro” que “rouba as terras dos seus filhos”, citado no samba, e protestaram. A associação mais direta, porém, não era com a grilagem de terras que devasta a Amazônia, nem com a conversão de floresta em pasto para boi ou monocultora de soja, nem com a exploração ilegal de madeira. Mas sim com a destruidora hidrelétrica de Belo Monte, construída pelos governos do PT, conhecida na região de Altamira como “Belo Monstro”.
Já o Salgueiro tangenciou a temática indígena em 1998, com o enredo Parintins, a Ilha do Boi-bumbá: Garantido x Caprichoso, Caprichoso x Garantido. Mas essa não é a sua marca. Fundada em 1953 num morro que foi inicialmente povoado por negros antes escravizados em fazendas de café, a escola esteve entre as primeiras a levar ao desfile a história e os heróis negros. Zumbi dos Palmares, Chica da Silva e Aleijadinho foram temas de enredos já nos anos 1960. “O Salgueiro foi provavelmente a agremiação que mais vezes apresentou a temática negra no Carnaval, então eu não diria que fazer Carnaval engajado seja novidade para a escola. A grande novidade é ser em torno da questão indígena”, diz o professor Mauro Cordeiro.
O historiador Luiz Antonio Simas pontua que as escolas de samba são camaleônicas – num ano podem fazer um enredo de resistência e no outro um “chapa-branca”. Mesmo assim, ele acredita que há sempre um engajamento de fundo, que está além da escolha do tema. “Eu parto do pressuposto de que uma escola de samba sempre é engajada. Você tem ali uma estrutura comunitária que é das sociabilidades afro-cariocas, você tem a sonoridade das baterias, que dialoga com os terreiros de candomblé e umbanda. Então ela é uma manifestação das culturas não brancas mesmo quando aparentemente não é”, analisa Simas.
Essa marca resiste mesmo à intimidade perigosa de algumas grandes escolas do Rio com o jogo do bicho – que hoje inclui também bingos, caça-níqueis e cassinos clandestinos. O próprio Salgueiro esteve durante mais de 30 anos, até o fim da década passada, sob o comando direto ou indireto e o patronato do clã dos Garcia, bicheiros que foram ao mesmo tempo alvo de assassinatos e de acusações de envolvimento em crimes violentos. Isso significava muito dinheiro – e vitórias na Avenida. Até hoje correm rumores sobre tentativas dos herdeiros da família de retomar o controle da agremiação por meio de aliados. Isso não impede que os salgueirenses definam sua escola como “raiz”: em 2024, apenas duas das 26 alas são “comerciais”, com fantasias vendidas para pessoas de fora.
As contradições do Carnaval carioca são evidentes. Tanto quanto o impacto potencial de um desfile do Grupo Especial – formado pelas agremiações mais bem colocadas no ano anterior e do qual o Salgueiro nunca saiu. Transmitido para milhões de pessoas, o desfile pode reverberar uma mensagem, se o enredo for certeiro em captar o espírito do tempo e o samba for potente. Com a homenagem aos Yanomami, o enredo e o samba do Salgueiro são considerados um dos melhores, se não o melhor, deste ano. “É o tipo de enredo que a gente diz que o samba não vai morrer na Avenida”, garante Simas.
O professor Mauro Cordeiro torce por um “desfile espetacular”, que cumpra a função de “produzir consciência a respeito da realidade do povo Yanomami, da necessidade de reconhecimento de seus direitos e da sua dignidade”. Essa é a intenção de Davi Kopenawa, que vai sair no último carro, junto com outros líderes e artistas Yanomami e Ye’kwana, a outra etnia que vive na Terra Indígena, além de convidados de diferentes grupos originários. Ele trará dois xamãs para fazer descer na Avenida os xapiri, seres que os ajudam a cuidar da floresta. “Não é só uma festa, não é só uma homenagem, é uma maneira também de tocar corações e mentes das pessoas”, explica Marcos Wesley.
O marimbondo e a luta dos pretos
Quando esteve no Rio em outubro passado, Davi Kopenawa cumpriu todo o circuito salgueirense. Além do morro, visitou a quadra da escola, próximo ao Morro do Salgueiro, e o barracão, na Gamboa, na Zona Portuária, onde os seis carros alegóricos já começavam a ser montados. A estátua de Omama, o criador dos Yanomami, que vai num carro logo no início do desfile, não estava pronta, mas ele viu o desenho e torceu o nariz. Não disse nada na hora, mas pediu a Marcos Wesley que reforçasse que Omama tinha que ser o “Yanomami mais perfeito”, com o cabelo bem curto e as pinturas corporais.
Cópia fiel: Davi pediu ao Salgueiro um retrato digno de um Yanomami em vez de um ‘indígena genérico’. Fotos: Comunicação/Acadêmicos do Salgueiro
Nesse périplo, Davi quis saber se a escola tinha crianças, porque acreditava que elas lhe dariam mais atenção do que os adultos e depois contariam aos pais e mães o que descobriram. Conversou, então, com as meninas e os meninos da Aprendizes do Salgueiro, que forma as novas gerações de ritmistas e passistas da agremiação. Neste Carnaval, as crianças vão desfilar pela primeira vez em 16 anos, numa ala própria. Elas perguntaram muito, inclusive sobre o significado do nome do xamã, Kopenawa. Ele contou que recebeu esse nome dos xapiri da vespa (ou marimbondos, palavra que usou com as crianças), que os Yanomami chamam kopena, e que haviam bebido o sangue de Arowë, um corajoso guerreiro do passado. Kopenawa foi o nome dado a ele quando já estava casado. Já Davi foi o nome que recebeu dos napëpë (não indígenas, brancos) quando era menino. “As crianças perguntaram se podiam abraçá-lo e, pela primeira vez, eu vi o Davi rindo”, conta o enredista Igor Ricardo.
O líder Yanomami também assistiu na quadra lotada à escolha do samba-enredo. Um dia antes, reuniu-se com os compositores dos três sambas finalistas. Marcelo Motta, que faz parte da Ala dos Compositores há 24 dos seus 41 anos e é um dos autores do samba campeão, lembra que Davi começou falando em sua língua, e só depois usou o português. “Isso foi muito forte para a gente. Mesmo sem a gente entender, ele conseguia passar [a mensagem] através da emoção. Ele por si só é uma energia nobre”, diz.
Coautor de nove sambas-enredo escolhidos para representar a escola, Motta afirma que recebe vídeos do Brasil inteiro com pessoas cantando o deste ano, que “furou a bolha do Carnaval”. As estrofes “eu aprendi português, a língua do opressor/pra te provar que meu penar também é sua dor” são uma referência a Davi. “Ele fez questão de frisar que é uma missão estar aqui, que o povo Yanomami precisa ser escutado”, conta. Segundo Igor Ricardo, nesse encontro com os compositores Davi voltou a falar das casas em cima de pedras. “A grande mensagem que ele deixou pra gente foi que a luta de vocês, pretos, ele usou essa palavra, agora é a minha luta também”, diz o enredista.
Brasil de cocar: passistas cantam que querem ser ‘a flecha’ do povo da floresta. Foto: Ana Carolina Fernandes/Sumaúma
O professor Mauro Cordeiro vê a comunidade salgueirense num momento “feliz, alegre”, com expectativa de ser “essa flecha para tocar o coração de todos os não Indígenas a respeito da causa Yanomami”. Também há muita esperança de que a escola ganhe a “décima estrela”, como reforça Tia Glorinha, a presidenta da Ala das Baianas – o Salgueiro foi campeão pela nona e última vez há 15 anos, em 2009.
Em 21 de janeiro, a agremiação fez um teste em seu ensaio técnico no Sambódromo: apagou as luzes da pista, para deixar brilhar pulseiras fluorescentes levadas pelos componentes, como se fossem xapiri dançando na Avenida. Sob muita chuva, a multidão que lotava as arquibancadas desceu para sambar atrás da escola. Tinha gente com retratos do jornalista Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, assassinados em 2022 na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas. Tinha gente com o boné do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Tinha gente com flores na orelha, como fazem as mulheres Yanomami. Tinha gente com camisa da Mangueira, a escola “madrinha” do Salgueiro. Todos sabiam o samba de cor.
O desfile de verdade “é sempre o enigma”, como diz o historiador Luiz Antonio Simas. Mas a comunidade salgueirense, além dos seus santos e orixás de praxe, desta vez conta com as forças da floresta para levantar a Avenida.
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Reportagem e texto: Claudia Antunes
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Viviane Zandonadi (fluxo de edição, montagem e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum
Presentes na Avenida: Bruno Pereira e Dom Phillips, assassinados em 2022 na Amazônia, são lembrados pela bateria. Foto: Ana Carolina Fernandes/Sumaúma