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Os anos de abandono governamental do território Yanomami transformaram a maior terra indígena do Brasil em um campo minado que já começa a explodir. O preço do ouro e a ausência de fiscalização dentro da área, que fica na fronteira com a Venezuela, posição estratégica para o narcotráfico, atraíram membros de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) para o garimpo. Os integrantes do grupo criminoso, que resistem a abandonar seu novo negócio lucrativo, têm atirado contra agentes de segurança e aldeias indígenas. Apenas em uma semana, entre o final de abril e o início de maio, 14 pessoas foram assassinadas no território – entre elas um indígena. O conflito pode se acirrar ainda mais diante da promessa do PCC de retaliar a morte de um dos seus membros durante uma operação policial no fim de abril.
Na semana passada, o governo federal anunciou que aumentará o reforço na área, mas a facção, que nasceu nos presídios de São Paulo, avisou, por meio de um “salve”, que pretende transformar os agentes em alvo. A mensagem, obtida por SUMAÚMA e confirmada por fontes da Polícia Federal e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), que falaram sob a condição de anonimato, explicita a ameaça ao governo: “Os irmao ai que gosta de matar ou que quer dar apoio para tarmos ai dando uma resposta emcima de todas as mortes de nossos irmão”. O texto, interceptado pelo serviço de inteligência da Polícia Rodoviária Federal, foi enviado a membros da facção e vinha acima de uma “nota de falecimento de irmão”.
Sandro Moraes de Carvalho, morto aos 29 anos, e seus parceiros costumavam postar fotos feitas dentro da terra Yanomami, ostentando acessórios de ouro e armas. Fotos: reprodução/redes sociais
O membro da facção morto é Sandro Moraes de Carvalho, de 29 anos, conhecido entre os integrantes do PCC como “presidente”. Ele gostava de publicar fotos e vídeos nas redes sociais em que se exibia com armas pesadas dentro da terra indígena. A mensagem que pede vingança contra sua morte foi descoberta na semana passada, e a revanche mira policiais. No entanto, como os servidores do Ibama e da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) costumam trabalhar em áreas de conflito acompanhados por agentes de segurança, eles também estão em risco.
A operação de retirada dos invasores da terra indígena, que começou em 6 de fevereiro, entrou agora em sua fase mais delicada, segundo fontes do governo e dos órgãos de controle que acompanham a desintrusão. “Agora chegamos ao cerne do problema”, disse uma delas, referindo-se justamente aos garimpeiros vinculados a facções criminosas que se mantêm no território e prometem resistir. O governo estima que 80% dos cerca de 25 mil mineradores ilegais que estavam na área indígena já tenham saído.
“A resistência está prevista desde novembro [do ano passado]”, diz o professor Rodrigo Chagas, pesquisador da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, referindo-se ao período em que Luiz Inácio Lula da Silva, já eleito, começou a prometer que acabaria com o garimpo ilegal. “Tem garimpeiros falando que vão só esperar a poeira baixar para voltar [ao território].” Indígenas relatam que em alguns locais os garimpeiros afirmam que não vão sair e seguem trabalhando na extração de ouro durante a noite, para evitar a fiscalização.
Desde fevereiro, quando uma força-tarefa federal passou a atuar no território, homens armados com fuzis têm resistido a tiros à atuação policial. Aldeias Yanomami que se opõem à presença dos criminosos também foram atacadas e pelo menos quatro indígenas foram assassinados neste ano. No último dia 29, o agente de saúde Ilson Xiriana, de 36 anos, participava de uma cerimônia fúnebre na comunidade de Uxiu quando criminosos armados passaram pelo local atirando. Segundo a Hutukara Associação Yanomami, as lideranças da comunidade acreditam, por conta do armamento usado, que esses homens fazem parte de uma facção que se instalou na região. Outros dois indígenas foram atingidos, e um deles ainda continua internado na UTI de um hospital em Boa Vista. Logo depois, a tensão escalou.
Em 2 de maio, os corpos de oito garimpeiros foram encontrados na mesma região e, após quatro dias, um novo corpo foi visto – o de uma mulher que provavelmente trabalhava em um prostíbulo dentro de um garimpo. A polícia ainda não informou quem são os suspeitos das mortes nem se os assassinados tinham relação com a facção.
Território livre para os narcotraficantes
A invasão garimpeira levou uma crise humanitária sem precedentes ao território Yanomami. Na imagem, agentes de órgãos de fiscalização sobrevoam área destruída pelo garimpo. Foto: Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima
A formação do chamado “narcogarimpo” e a mudança de comportamento dos garimpeiros invasores são um fenômeno recente e mais uma herança deixada pelo governo de Jair Bolsonaro (PL). Em 2019, indígenas da região do Palimiu começaram a notar a presença de armamento pesado, como pistolas e fuzis, entre os garimpeiros, segundo relatório do Instituto Socioambiental. Os criminosos, que circulavam de barco na frente da comunidade, também passaram a usar capuzes e roupas pretas. Em 2021, os indígenas da região ameaçaram barrar a passagem dos invasores, mas acabaram sendo atacados por tiros em dez ocasiões diferentes, entre abril e agosto daquele ano.
A invasão garimpeira trouxe uma crise humanitária sem precedentes ao território Yanomami e foi uma das causas da morte de pelo menos 570 crianças com menos de 5 anos de idade que não conseguiram acesso a atendimento médico adequado, já que os agentes de saúde foram expulsos das regiões onde os criminosos atuavam. Em janeiro, para conter a crise humanitária, uma força-tarefa de saúde do governo foi enviada para a área indígena. No mês seguinte, foi formada uma operação policial. Mas até hoje os membros do governo não conseguiram retomar o controle de algumas das áreas invadidas – e um dos motivos é a resistência dos criminosos. Agentes do Ibama e da PRF que realizam uma operação na área desde fevereiro foram recebidos a tiros em regiões como Waikás e Palimiu em março e abril.
Depois que 14 pessoas foram assassinadas em apenas uma semana, número significativo para uma área onde vivem menos de 30 mil indígenas, o governo tem intensificado as ações e operações no território com agentes da Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Ibama. Mas isso pode ser insuficiente, segundo quatro fontes ouvidas por SUMAÚMA ligadas à desintrusão, por causa da falta de dedicação do Exército e da Aeronáutica. São as Forças Armadas que mais têm conhecimento e infraestrutura para monitorar o território de fronteira, cuja segurança é estratégica para o Brasil.
Uma das críticas ouvidas de policiais federais é ao que chamam de demora do Exército – o órgão responsável pela logística da desintrusão, como o transporte de agentes policiais e fiscais e a montagem de estruturas para acampamentos. “Até hoje não há sequer acampamento montado no Homoxi, o principal hub de logística aérea do garimpo”, resumiu um deles a SUMAÚMA. Na região do Homoxi, o posto de saúde foi invadido pelos criminosos durante o governo de Jair Bolsonaro e virou um depósito de combustível para abastecer a logística do garimpo. O local foi incendiado pelos garimpeiros em dezembro do ano passado, como forma de retaliação a uma operação pontual da Polícia Federal. No local vivem 3.485 indígenas, que ficaram sem assistência médica.
Agentes do Ibama destroem avião utilizado pelo garimpo na TI Yanomami, em ação de combate realizada em abril de 2023. Foto: Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima
“Tem pessoas ligadas ao território dizendo que o Exército está fazendo corpo mole neste momento [de desintrusão]. O maior indício disso é que quem está fazendo as operações com o Ibama e PF é a Polícia Rodoviária Federal [em um território cujo transporte é aéreo e fluvial]”, analisa Chagas, pesquisador da UFRR.
Exército e Aeronáutica negam as evidências de “corpo mole” relatadas por diferentes fontes dentro do território. Procurado, o Ministério da Defesa, comandado por José Múcio Monteiro, um político de direita de quem Jair Bolsonaro já disse ser próximo, afirmou que “desde janeiro, quando foi decretada situação de emergência em Território Yanomami, as Forças Armadas estão mobilizadas na ajuda humanitária” e que desde 30 de abril “se mantêm de prontidão para o atendimento de novas demandas frente aos ataques contra indígenas”.
Já a Aeronáutica afirmou que “desde o fim dos corredores aéreos [que permitiram o tráfego de aeronaves para a saída dos garimpeiros] tem notificado e interceptado aeronaves suspeitas, bem como auxiliado os órgãos de segurança na destruição de diversas aeronaves”. As Forças Aéreas Brasileiras afirmaram a SUMAÚMA que “atuam em conformidade com as leis e as normas vigentes, que regem os procedimentos de interceptação e interdição de aeronaves”.
O pesquisador Aiala Colares, da Universidade do Estado do Pará e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, estuda as facções que atuam no Norte e tem investigado o que acontece na terra indígena. “As Forças Armadas sempre foram a favor do garimpo, mesmo antes do governo Bolsonaro”, afirma. Ele destaca que as duas atividades (narcotráfico e ouro ilegal), juntas, geram dinheiro suficiente para comprar maquinário, munição e armas pesadas e para corromper servidores públicos.
Apesar de Roraima ter sido formada a partir de uma ligação histórica com o garimpo – na capital, Boa Vista, há um monumento ao garimpeiro em frente à Assembleia Legislativa e à sede do governo do estado –, existe ainda outro fator importante a ser considerado. O clima entre Executivo e Forças Armadas está tenso principalmente depois da tentativa de golpe em 8 de janeiro, feita com a conivência e o incentivo do Gabinete de Segurança Institucional, composto à época por militares leais a Bolsonaro.
O elo do garimpo com o PCC
Detalhe de parede com a sigla do PCC grafada em um presídio de Roraima. Foto: Thiago Dezan/Farpa/Comissão Interamericana de Direitos Humanos
A atuação de membros de facções em garimpos na Terra Indígena Yanomami pode ser explicada por diversos fatores, mas um deles pode ser considerado a origem do fenômeno, afirmam pesquisadores: as rebeliões e fugas ocorridas no sistema carcerário de cidades na região Norte do país em 2016 e 2017.
“Sabemos que em Boa Vista as facções chegam em 2013 e 2014 nos presídios. Em 2016 e 2017, tem uma guerra de facções e o PCC se torna hegemônico na região. Eu trabalho com a hipótese de que a participação na mineração ilegal começa com esses presidiários que fogem da cadeia e usam o garimpo como refúgio. E, uma vez na terra indígena, eles não conseguem mais voltar”, diz Colares. Já o uso de pistas de pouso clandestinas no território pelo narcotráfico internacional é mais antigo e acontece pelo menos desde a década de 1990, acrescenta o pesquisador.
Se em 2017 já havia membros de facções operando o tráfico de drogas na região, pouco a pouco essas organizações criminosas começaram a desenvolver uma sinergia com o crime ambiental. “Essas duas economias ilícitas [garimpo e narcotráfico] se encontram dentro do território, onde não tem presença do Estado, onde é cada um por si”, afirma Melina Riso, diretora de pesquisa do Instituto Igarapé. Ela destaca que não se pode dizer que as facções controlam os garimpos da terra indígena, mas sim que eles contam com o apoio de membros dessas organizações criminosas: “As facções não são as donas do bolo, mas compartilham a estrutura logística do garimpo, compartilham aeronaves. Quem transporta droga transporta ouro”.
Além do deliberado abandono da Terra Indígena Yanomami pelo governo Bolsonaro, outros fatores explicam o aumento da sinergia entre o narcotráfico e o mercado do ouro ilegal, na avaliação de Melina: o desmonte de órgãos ligados à fiscalização ambiental, a valorização do metal no mercado internacional, uma hiperprodução de cocaína nos últimos anos (que afetou o preço do produto), políticas de facilitação do acesso a armas e o discurso pró-garimpo por parte do próprio Jair Bolsonaro.
“Por uma série de fatores, o crime [tradicional] está buscando outro tipo de economia. E o ouro é menos arriscado, é mais fácil de ‘lavar’, não tem absolutamente nenhum controle por parte do Estado”, analisa Melina. “No limite, é mais vantajoso.”
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Mark Murray
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya