Jornalismo do centro do mundo

MARINA LIDEROU MUDANÇA NA POSIÇÃO DO BRASIL SOBRE COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS, MAS NÃO PODE GARANTIR QUE A POLÍTICA INTERNA TAMBÉM MUDARÁ. FOTO: CHRISTOPHER EDRALIN/COP-28

Wenatoa Parakanã deixou as duas filhas de 2 e 6 anos e o filho de 16 em sua aldeia no Pará para viajar 12 mil quilômetros até Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde conseguiu entregar pessoalmente ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a vários ministros seu pedido de que seja concluída a retirada dos invasores da Terra Indígena Apyterewa. A desintrusão de Apyterewa, entre as cidades de Altamira e São Félix do Xingu, começou no início de outubro, por determinação do Supremo Tribunal Federal, mas enfrenta pressão contrária de políticos locais e demora a terminar. Os Parakanã, um povo de caçadores, hoje só podem circular por cerca de um quinto de sua terra. “Os nossos avós caçavam ficando no mato por semanas com suas famílias, mas hoje a gente não tem isso mais, porque os invasores estão tomando tudo, fazendo criação de gado ilegal”, contou Wenatoa em um dos debates de que participou na Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas deste ano, a COP-28, que aconteceu entre os dias 30 de novembro e 13 de dezembro em Dubai.

Assim como Wenatoa, a ministra Marina Silva, chefa da delegação brasileira, e a equipe de negociadores, formada por diplomatas e autoridades do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, tiveram em Dubai uma jornada desafiadora. Durante a conferência, fizeram uma inflexão na posição brasileira sobre o tema que nos últimos 31 anos, desde a aprovação da Convenção do Clima, havia sido o elefante ignorado nas salas de negociação das COPs: o fim da produção e do uso de combustíveis fósseis (petróleo, carvão e gás), os principais responsáveis pelo aquecimento do planeta. Se até meados de novembro os negociadores brasileiros evitavam o assunto e alegavam que ele não estava na pauta oficial da COP, em Dubai eles falaram em “enfrentar” a questão e trabalhar por sua inclusão no Balanço Global, o principal documento aprovado na conferência.

Em discurso no dia 9 de dezembro, Marina propôs a criação de uma instância, dentro da Convenção do Clima, para negociar um cronograma para “tirar o pé do acelerador das energias fósseis”, com os “países desenvolvidos liderando esse processo de desaceleração”. Em 11 de dezembro, dois dias antes de a conferência terminar, ela foi explícita: “A métrica de sucesso desta COP vai depender da linguagem em relação a combustíveis fósseis”. A ministra acrescentou que era preciso “assimilar esse tema inadiável”. Depois, referindo-se à conferência de Belém em 2025, afirmou: “Não queremos uma pororoca de pressão na COP-30 de algo que não foi sendo metabolizado ao longo do processo”.

WENATOA PARAKANÃ ENTREGA PEDIDO DE DESINTRUSÃO DE APYTEREWA A RODRIGO AGOSTINHO, DO IBAMA, MARINA E HADDAD. FOTO: ASSOCIAÇÃO INDÍGENA TATO’A

O mais provável, porém, é que pororocas estourem nos quase dois anos até Belém.

O acordo de Dubai “convoca” os países a “transitar para longe dos combustíveis fósseis nos sistemas de energia, de uma forma justa, ordenada e equitativa, acelerando a ação nesta década crítica para atingir emissões líquidas zero em 2050, de acordo com o que diz a ciência”. O texto tem uma linguagem vaga que, internacionalmente, dará margem a jogos de empurra intermináveis. Fruto de uma negociação em que países como os Estados Unidos, a nação que mais produz petróleo no mundo, se abrigaram atrás de bloqueadores como a Arábia Saudita, ele não estabelece um roteiro claro para que seja possível chegar a 2050 com uma redução radical da emissão de gases do efeito estufa. Além disso, o financiamento para países com menos recursos para fazer a transição energética só será discutido em 2024.

Internamente, o governo Lula será cada vez mais pressionado a mostrar coerência e deixar de lado o projeto de produzir “a última gota de petróleo”. Os Indígenas tiveram a contribuição dos seus saberes para o combate à emergência climática reconhecida no Balanço Global. Eles agora reivindicam a inclusão de políticas de demarcação e proteção dos seus territórios nas novas metas de redução de emissão de gases do efeito estufa que o Brasil, como todos os países, terá que apresentar até 2025. A ideia mais nova levada pelo governo a Dubai, a da criação de um fundo internacional que pague pelas florestas tropicais, foi apresentada de modo muito embrionário e terá que ser posta em prática.

Marcio Astrini, secretário-executivo do Observatório do Clima, aponta a incoerência entre a escassez de passos obrigatórios no acordo de Dubai e a necessidade, que o texto reconhece várias vezes, de conter o aquecimento da temperatura do planeta em 1,5 grau Celsius, em relação aos níveis anteriores à Revolução Industrial. A ruptura desse limite, que muitos cientistas do clima já dão como certa, pode tornar a vida insuportável. “O financiamento não vai aparecer em cima da mesa e os compromissos não vão ser cumpridos apenas apostando no bom senso dos países. Se não tiver um movimento crescente de opinião pública, da sociedade civil, cobrando os que têm mais responsabilidade, e o Brasil está incluído nisso, não vai sair do papel”, diz Astrini.

SHIRLEY KRENAK, SILVINHA XUKURU E INGRID SATERÉ MAWÉ NA COP, ONDE MULHERES ERAM MAIORIA ENTRE INDÍGENAS. FOTO: DANIELE GUAJAJARA E KEILA GUAJAJARA/COMUNICADORAS ANMIGA

A criação da instância sugerida por Marina para discutir a saída dos combustíveis fósseis não foi aprovada. O Balanço Global, porém, encarrega os anfitriões das COPs-28, 29 e 30 – Emirados Árabes Unidos, Azerbaijão e Brasil, todos países petrolíferos – de coordenar a implementação das decisões da conferência de Dubai, no que é chamado de “Mapa do Caminho para a Missão 1,5”.

É uma missão quase impossível. Kevin Anderson, professor de energia e mudança do clima da Universidade de Manchester, no Reino Unido, lembrou que, se o mundo mantiver os níveis atuais de emissões, vai esquentar mais do que 1,5 grau nos próximos cinco a oito anos. “Mesmo que comecemos a cortar seriamente as emissões em 2024, e não há essa exigência no texto [de Dubai], ainda precisaríamos chegar por volta de 2040 tendo eliminado o uso de fósseis”, disse ele ao Science Media Centre (Centro de Mídia de Ciência), um site britânico.

Marina, o talismã e as muitas faces de Lula

Ao dar o tom das posições do Brasil em Dubai, Marina Silva se apegou a uma frase de Lula como a um talismã: “É hora de enfrentar o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”, disse o presidente num discurso em 1 de dezembro, o primeiro dos dois dias da COP dedicados às intervenções de líderes de governos. Foi com essa frase que a ministra respondeu indiretamente, no mesmo dia, à notícia que havia explodido na véspera, pelas mãos do ministro de Minas e Energia, Alexandre Silveira, de que o Brasil entraria na Opep+, formada por países aliados da Organização dos Países Exportadores de Petróleo. “A questão dos combustíveis fósseis está no cerne de tudo o que estamos enfrentando no mundo, e o presidente Lula teve a coragem de levantar o tema na abertura dos trabalhos”, amenizou ela em um painel de que participava ao lado do ministro da Fazenda, Fernando Haddad.

Questionada por SUMAÚMA, já no final da COP, se a frase foi uma sugestão dela, Marina negou: “A frase é dele, mas ela não está descolada do trabalho que foi feito aqui. Não é uma coisa que a gente inventou de fazer aqui”.

A ministra, no entanto, não tinha elementos para responder às muitas perguntas que lhe foram feitas não só sobre a entrada na Opep+, mas também sobre os planos que continuam de pé para a exploração de petróleo no litoral da Amazônia e sobre o megaleilão de blocos de exploração realizado pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) em 13 de dezembro, o dia em que a COP terminou.

Nesses casos, o máximo que ela tinha para dizer é que esse debate ocorreria a partir de agora, quando “os setores público e privado terão que traduzir o compromisso que assumimos em suas ações e seus planejamentos”. No caso do governo, afirmou ela, o debate “precisa ser feito pelo Conselho Nacional de Política Energética, que considerará com certeza o que foi aprovado aqui”.

O Conselho, no qual 16 ministérios têm assento, é presidido por Silveira, político do PSD de Minas que é um entusiasta do aumento da exploração de petróleo e gás no Brasil. Em 30 de novembro, ele disse em Dubai que era contra discutir o ritmo da exploração de petróleo nesse órgão. “Eu sou extremamente contra o Conselho Nacional de Política Energética proibir exploração de petróleo”, afirmou. “A política nacional é muito definida nesse sentido, desde que cumpra a legislação ambiental, desde que fique em área possível de ser explorada”, completou.

É evidente a lacuna retórica entre Marina e Silveira. Ambos enfatizam que os países ricos devem tomar a dianteira de uma “transição justa” para a saída dos combustíveis fósseis. Mas a ministra do Meio Ambiente afirmou que, no caso do Brasil, que tem recursos naturais e tecnológicos, pensa “num corredor que assegure maior velocidade”, num trabalho conjunto com países desenvolvidos. Já o ministro disse que o Brasil não agirá antes que “os países industrializados deem um norte”, e que é preciso que eles “monetizem” os combustíveis renováveis do país, “ou produzindo aqui ou comprando”.

Uma fonte do governo, que pediu para não ser nomeada, disse que o Conselho Nacional de Política Energética é um organismo ineficiente, que na maioria das vezes carimba decisões do Ministério de Minas e Energia ou se perde em debates sem conclusão. Essa autoridade acredita que o Brasil não vai definir até quando e com que intensidade vai produzir petróleo e gás – e para que vai usar o dinheiro dessa produção – sem uma intervenção de Lula. Só uma decisão no mais alto nível é capaz de mudar o ritmo de leilões de novos blocos de petróleo e gás, de organizar o mercado e orientar investimentos, argumentou.

O documento principal de Dubai, aliás, traz brechas que podem ser exploradas pelos defensores da exploração fóssil no Brasil. A principal delas “reconhece o papel” de “combustíveis de transição” na saída gradual dos fósseis. É uma referência ao gás, considerado um combustível de transição para a geração de eletricidade em países onde a produção de energia renovável a partir do sol, do vento e de biomassa é muito cara, o que não é o caso do Brasil. Apesar disso, há um forte lobby pelo aumento do uso do gás para gerar eletricidade no país. Isso ficou evidenciado nos jabutis introduzidos na lei de privatização da Eletrobras, em 2021, e agora na lei que regulamenta a produção de energia eólica no mar. Jabutis são emendas que nada têm a ver com o objetivo da legislação. No caso da lei das eólicas, que ainda precisa passar pelo Senado, os deputados também incluíram no texto a extensão até 2050 da produção de eletricidade a partir do carvão, o mais poluente dos combustíveis fósseis.

Sociedade civil leva um balde de água fria

Foi no dia 2 de dezembro que Wenatoa Parakanã esteve com Lula em Dubai, quase do outro lado do mundo. Num encontro do presidente com representantes de cerca de 130 organizações da sociedade civil, ela entregou a ele um folheto em que os Indígenas de Apyterewa pedem apoio para “restaurar sua soberania” sobre o território que ganhou o aposto de “o mais desmatado da Amazônia”. Foi em 2007, no segundo governo de Lula, que a demarcação de Apyterewa foi homologada. E foi com a Usina Hidrelétrica de Belo Monte, leiloada no governo de Lula e construída no governo da também petista Dilma Rousseff, que a invasão do território passou a aumentar sem parar. Na COP-28, Wenatoa entregou o mesmo folheto aos ministros Marina Silva, Fernando Haddad e Márcio Macêdo, da Secretaria-Geral da Presidência. No encontro da sociedade civil com Lula, Macêdo prometeu diante de todos que a retirada dos invasores será completada.

LULA, COBRADO NUMA REUNIÃO COM A SOCIEDADE CIVIL, DEVOLVEU CRÍTICAS E JOGOU UM ‘BALDE DE ÁGUA FRIA’ AO CONFIRMAR ENTRADA NA OPEP+. FOTO: RICARDO STUCKERT/PR

O encontro foi um “balde de água fria”, como definiu depois um dos participantes. Houve muitas cobranças e o presidente foi menos bonachão e mais ríspido do que quando esteve na COP anterior, no Egito. Na época, ele ainda não havia tomado posse e foi recebido como salvador depois de quatro anos do governo do extremista de direita Jair Bolsonaro.

Agora, num salão lotado, diante de Índigenas, militantes dos movimentos negros, jovens ativistas e ambientalistas, o presidente ouviu um apelo de Marcio Astrini, do Observatório do Clima, para que “preenchesse o vácuo de liderança” e pusesse na mesa das negociações a proposta de um cronograma para a eliminação gradual dos combustíveis fósseis. “Se isso não for atacado, vamos continuar discutindo coisas que são importantes, mas não vão resolver o problema”, enfatizou Astrini.

Lula respondeu que “acabar com os combustíveis fósseis é um desejo, mas é [também] uma guerra, uma luta”. E, depois de um segundo de suspense em que começou dizendo que “o Brasil não vai participar da Opep”, bateu o martelo: “O Brasil vai participar da Opep+”. Alegou que essa participação será para convencer os países do grupo de que “precisam se preparar para reduzir os combustíveis fósseis” e investir em energias renováveis na América Latina. Não convenceu ninguém.

Dois dias depois, em 4 de dezembro, o Brasil ganhou o Fóssil do Dia, um antiprêmio concedido pela Climate Action Network, a Rede de Ação Climática, que reúne mais de 1,8 mil organizações socioambientais de 130 países. A rede lembrou que no Egito Lula prometeu ser “um campeão climático”, mas seu governo “aparentemente confundiu produção de petróleo com liderança ambiental”. Um observador da sociedade civil com acesso às negociações contou que o antiprêmio foi um “choque de realidade” e contribuiu para a inflexão da posição diplomática brasileira.

No encontro com Lula, coube a Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), vocalizar as reivindicações desse grupo. “O senhor firmou um compromisso conosco”, lembrou ele, cobrando celeridade nas demarcações de territórios e apoio para evitar que os vetos de Lula ao marco temporal fossem derrubados pelo Congresso. O presidente quis devolver a cobrança. Disse que o movimento social deveria se mobilizar para eleger um Legislativo menos conservador e que Sonia Guajajara, a ministra dos Povos Indígenas, que estava presente, teria que “colocar mais pena nesse cocar” e ir mais ao Congresso negociar.

FLORESTA NA TERRA INDÍGENA ITUNA/ITATÁ. NA COP, META DE ZERAR DESMATAMENTO EM 2030 ENTROU PELA PRIMEIRA VEZ EM DOCUMENTO OFICIAL. FOTO: LELA BELTRÃO/SUMAÚMA

Foi como uma antecipação da derrota de 14 de dezembro, um dia depois do fim da COP, quando os congressistas derrubaram os vetos. Pela lei, cuja tese já foi julgada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, só podem ser demarcadas as terras já ocupadas ou disputadas pelos Indígenas em 5 de outubro de 1988, quando a Constituição foi promulgada.

Na votação no Congresso, deputados e senadores de partidos que comandam ministérios votaram pela derrubada dos vetos. Entre eles estava o ministro da Agricultura e Pecuária, Carlos Fávaro, do PSD de Mato Grosso, senador que havia voltado ao Senado para aprovar a indicação de Flávio Dino para o Supremo Tribunal Federal. Fávaro foi um dos ministros de Lula que estiveram em Dubai, onde muitos dos discursos lembraram que, de acordo com dados da ONU, os povos originários são responsáveis pela preservação de 80% da biodiversidade do planeta.

Embora Dinamam Tuxá tenha falado na reunião com Lula, as mulheres eram maioria entre os cerca de 100 Indígenas brasileiros na COP. Uma delas, Joenia Wapichana, presidenta da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), amanheceu em 5 de dezembro com a notícia do atentado em que um funcionário da Funai que participava da desintrusão de Apyterewa foi ferido a bala na noite do dia 4, no Brasil. Joenia participava de um debate no Pavilhão do Brasil intitulado “Territórios Indígenas: segurança para o planeta, lar para quem protege”, e o ataque dominou a discussão.

Como mulher Indígena, Wenatoa Parakanã fez história quando foi eleita, em dezembro de 2022, presidenta da Associação Tato’a, que representa as 21 aldeias de Apyterewa. Isso aconteceu graças aos votos das mulheres – só cinco homens votaram nela, numa cultura em que “mulher não pode mandar nos homens”, como disse o cacique Ty’e Parakanã, que também estava em Dubai. “Sempre tive esse sonho [de liderar a defesa de seu território] e, quando peguei o microfone, Deus abriu a porta para mim”, contou Wenatoa.

A delegação indígena do Brasil em Dubai foi a maior já reunida nas COPs. A Apib participa do Fórum Internacional de Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas, conhecido como o Caucus Indígena da Convenção do Clima, e da Aliança Global das Comunidades Territoriais, formada também por organizações da Amazônia, da América Central, da Indonésia e da África central.

Uma das iniciativas dos Indígenas brasileiros em Dubai foi a apresentação do Boletim de Emergência Climática nas Terras Indígenas da Amazônia Brasileira. O relatório traz dados sobre intensidade da seca, queimadas, desmatamento e garimpo nesses territórios. Maria Cordeiro, a Mariazinha Baré, coordenadora da Articulação das Organizações e Povos Indígenas do Amazonas, disse que o boletim é uma tentativa de “usar a linguagem” dos não Indígenas para mostrar que nesses territórios “também existem soluções” para os problemas. “Nós não somos beneficiários, somos parte. Queremos espaço para dizer como queremos, de que forma, sem intermediários”, afirmou.

Mariazinha vê a COP com ceticismo: “Botaram o problema na frente e esqueceram a causa. Só falam da doença, a mudança climática, mas não da saúde, que é a biodiversidade. A verdadeira doença do planeta é a mercantilização de tudo”.

Foi por exigirem serem tratados como participantes, com poder de decisão, que os Indígenas esperam para ver como serão traduzidas na prática as referências a eles nos documentos da COP-28. O principal deles, o Balanço Global, faz sete menções aos direitos e à participação dos povos originários. A principal novidade em relação a textos anteriores da ONU são recomendações para que os países levem em conta a visão de mundo, os valores e o conhecimento indígena nas políticas para deter a mudança do clima.

A mãe Terra e o quebra-cabeça das florestas

Em 8 de dezembro, num debate na COP sobre o papel dos territórios indígenas na preservação da biodiversidade, Wenatoa Parakanã disse: “Se a gente protege a Amazônia, é porque está protegendo a vida. Não somente os animais, a água, as plantas, mas a gente tá falando de todo ser humano que vive no planeta”. Ela fez um apelo: “A nossa vinda aqui na COP é pedir apoio para recuperar o que foi destruído, para depois os nossos animais viverem bem, como nós seres humanos. (…) O planeta Terra é como uma mãe que está grávida. Para a criança ficar bem, a mãe tem que estar bem. Nosso planeta tem que estar bem para a gente ficar bem. Se continuar com poluição, desmatamento, poluição da água, não terá futuro para os seres humanos”.

Numa conferência marcada pela questão dos combustíveis fósseis, a conservação de florestas como a Amazônica ficou em segundo plano – embora as duas questões estejam intimamente ligadas. Segundo o climatologista Carlos Nobre, que estava em Dubai, se o aumento da temperatura do planeta chegar a 2,5 graus, a floresta passará do ponto de não retorno, degradando-se até perder a capacidade de absorver gás carbônico e regular o clima. “Se você restaurar muito a floresta, pode até aguentar um pouco mais. Mas não pode passar de 3 graus”, disse Nobre.

No Balanço Global, os dois parágrafos que tratam de florestas trazem a inclusão inédita da meta de desmatamento zero em 2030. A linguagem é mais fraca do que a proposta pelos negociadores brasileiros, porque não implica um compromisso firme dos países. O texto “enfatiza” a importância de “interromper e reverter” o desmatamento e a degradação de florestas até o fim desta década e “nota” a necessidade de mais apoio e investimentos para que isso aconteça.

O documento também faz, pela primeira vez, uma relação entre a conservação da biodiversidade e a das florestas. Isso é importante porque, nas negociações sobre clima, as florestas tendem a ser vistas apenas por sua capacidade de absorver carbono da atmosfera.

Ruth Davis, especialista da Escola de Negócios e Meio Ambiente da Universidade de Oxford, diz que os trechos sobre florestas poderiam ter sido melhores se tivessem previsto um programa para financiar a conservação florestal. Ela fez as contas e concluiu que todos os compromissos sobre florestas tropicais anunciados em Dubai somaram 400 milhões de dólares. É pouco quando se considera que, em 2022, a 15ª Conferência de Biodiversidade da ONU, no Canadá, estimou em 200 bilhões de dólares por ano o valor necessário para a conservação da natureza. Na COP foram anunciadas duas doações novas para o Fundo Amazônia, da Noruega e do Reino Unido – respectivamente de 50 milhões de dólares, cerca de 250 milhões de reais, e de 35 milhões de libras, o equivalente a aproximadamente 216 milhões de reais. O fundo, criado em 2008, já recebeu até agora 3,5 bilhões de reais, com a maior parte desse dinheiro doada pelos noruegueses.

O Fundo Amazônia representa um pagamento pela redução do desmatamento a partir de 2004, quando foi aprovado o primeiro plano de combate ao desmatamento na região. Ele ficou paralisado no governo Bolsonaro, e a destruição aumentou. Juliana Santiago, que foi gestora do Fundo, estimou que, se forem contados os dez primeiros anos em que o desmatamento na Amazônia diminuiu neste século, o mecanismo estaria elegível para receber 25 bilhões de dólares, quase 20 vezes mais do que captou. Juliana hoje trabalha com a Coalizão Leaf, que busca acordos com governos para remunerar a conservação de florestas segundo a mesma lógica do Fundo Amazônia. A diferença é que as empresas que integram a Coalizão usariam créditos de carbono gerados pela redução do desmatamento para abater suas emissões.

Ruth Davis aponta uma crise de financiamento para as florestas. Segundo ela, isso é resultado dos questionamentos crescentes ao chamado mercado voluntário de carbono e dos impasses que voltaram a impedir, na COP de Dubai, a regulamentação do Artigo 6.4 do Acordo de Paris, de 2015. Esse artigo cria um mercado supervisionado internacionalmente para o comércio de créditos de carbono que poderá aceitar créditos gerados por reflorestamento. O mercado voluntário, que não é regulado pelos governos, tem sido criticado pelo assédio a Indígenas e comunidades tradicionais e por trabalhar com um cálculo considerado frágil: em vez de remunerar uma redução do desmatamento que já ocorreu, ele paga por um projeto que promete evitar um desmatamento que supostamente ocorreria se a pressão sobre uma área determinada de floresta persistisse. “As florestas em pé não estão recebendo o nível de fundos necessário”, afirma Ruth.

ATOS PELA ELIMINAÇÃO DOS COMBUSTÍVEIS FÓSSEIS MARCARAM A COP, MAS DECISÃO DOS PAÍSES FICOU LONGE DO NECESSÁRIO. FOTOS: CHRISTOPHER PIKE E ANTHONY FLEYHAN/COP-28

Por isso, ela diz que é bem-vinda a proposta do Brasil de criação de um fundo internacional para remunerar os países com florestas tropicais. O fundo, que se chamaria Floresta Tropical para Sempre, busca evitar a lógica do mercado de carbono. A ideia, apresentada na COP por Garo Batmanian, diretor do Serviço Florestal Brasileiro, é pagar anualmente uma soma fixa por hectare de floresta. “A floresta é mais do que carbono, é regulação climática, são as pessoas que moram lá”, disse Garo. Para Ruth, o “trabalho duro” para colocar o fundo de pé começa agora. “O Brasil precisa fazer muita diplomacia para construir apoio antes da COP-30”, afirma.

Para a dotação inicial do Floresta Tropical para Sempre, a proposta do Brasil é captar o dinheiro com fundos soberanos, onde estão depositadas as economias de alguns países, a maior parte delas vinda da exportação de petróleo, como é o caso da Noruega e da Arábia Saudita. O dinheiro teria um gestor independente, que investiria em negócios que “não fazem mal à saúde nem ao meio ambiente”, segundo Garo Batmanian. Para aderir ao fundo, os países com florestas adotariam ao menos três compromissos comuns: manter uma taxa de desmatamento muito baixa, ter um mecanismo de uso do dinheiro “transparente e inclusivo”, e um método “transparente e confiável” de medição da cobertura florestal.

“Existem 12 trilhões de dólares em fundos soberanos no mundo, e eles já têm que investir de 20% a 30% disso em fundos de baixo risco com baixo retorno”, explicou Garo. “Então nem eles perdem dinheiro nem estamos pedindo dinheiro novo. Por isso a ministra [Marina] chama de constrangimento ético”, completou, referindo-se à origem petrolífera do dinheiro.

O lançamento da proposta na COP recebeu algumas críticas. Maria Netto, diretora-executiva do Instituto Clima e Sociedade, acha que o conceito é positivo, mas foi anunciado de forma prematura. “Se a ideia era ter um fundo global, era legal ter anunciado já com outros países e com critérios mais firmes para dar confiança aos investidores”, diz ela. Em entrevista a SUMAÚMA, o ministro do Clima e do Meio Ambiente da Noruega, Andreas Bjelland Eriksen, chamou a proposta de “inovadora” e disse que seu país está interessado em discutir, mas que os “detalhes” precisam ser analisados tecnicamente.

Nos eventos paralelos da COP, as autoridades brasileiras puseram muita ênfase em projetos de restauração e reflorestamento. Por um decreto de 2017, que só agora está sendo posto em prática, o país tem como meta restaurar 12 milhões de hectares de vegetação nativa até 2030. O Fundo Amazônia e o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) lançaram uma iniciativa, a Restaura Amazônia, para tentar impulsionar esse processo. No valor de 1 bilhão de reais, ela combina 450 milhões em doações – para territórios Indígenas e comunitários, unidades de conservação e assentamentos rurais – e 550 milhões em empréstimos a juros baratos, para proprietários privados.

Fabíola Zerbini, diretora do Departamento de Florestas do Ministério do Meio Ambiente, explicou que o objetivo é dar um “pontapé inicial”, criando cadeias de sementes, viveiros e assistência técnica. A esperança é que a iniciativa estimule investimentos privados. O BNDES estimou que o reflorestamento de 6 milhões de hectares, metade da meta, exigiria investimentos de 51 bilhões de reais. O governo do Pará também lançou na COP um plano de restauração de 5,6 milhões de hectares, elaborado com o apoio das ONGs internacionais World Resources Institute (WRI, ou Instituto de Recursos Mundiais) e Conservação Internacional.

O foco na restauração tem apoio de cientistas como Nobre. Ele cita pesquisas que mostram que, em muitas áreas da floresta Amazônica, o efeito combinado da degradação da mata e da mudança climática está aumentando a mortalidade das árvores.

Outros especialistas consideram que o governo não pode dar como certo que o desmatamento zero será alcançado com facilidade, já que parte da destruição da mata, sobretudo no Cerrado, ocorre de forma “legal”, autorizada pelo Código Florestal. Para conservar a floresta, os proprietários teriam que ter incentivos de curto prazo, e os projetos do mercado voluntário de carbono não podem ser descartados, dizem alguns. “As metodologias do mercado voluntário precisam ser aprimoradas, mas matar essa ideia não é um bom caminho. Ela resolve uma parte do fluxo de investimentos”, afirma Mauricio Bianco, vice-presidente da Conservação Internacional no Brasil.

Marcio Astrini, do Observatório do Clima, ressalta que é preciso considerar o risco político que pode comprometer o desmatamento zero: “Temos os inimigos da floresta no Congresso. Se o Congresso do Brasil fosse um país, estaria em Dubai bloqueando o acordo”.

Apesar das menções às florestas, os documentos aprovados na COP foram omissos em relação à pecuária extensiva e às monoculturas agrícolas, que estão na origem do desmatamento. O Balanço Global cita o objetivo de reduzir as emissões de metano, um poderoso gás do efeito estufa, mas no contexto da transição energética, sem referência específica ao gás liberado pelo arroto dos bois. Depois da destruição das florestas, o setor agropecuário é a segunda maior fonte de emissões no Brasil, com respectivamente 48% e 27% delas em 2022.

Os lobbies, o gigantismo e o retorno ao básico

A COP de Dubai foi gigantesca. A ONU, em seu número mais atualizado, registrou 85 mil participantes. A grande maioria deles esteve nas centenas de eventos paralelos, e não nas negociações. O jornal Folha de S.Paulo contou 3.081 brasileiros inscritos. Destes, 1.337 eram dos governos federal, estaduais e municipais, do Legislativo e do Judiciário. Os outros 1.744 eram de organizações da sociedade civil, centros de estudos, universidades e empresas. Quando Marina e Haddad lançaram a ideia do fundo para as florestas, havia tantos políticos brasileiros e seus assessores na sala que o resto do público não pôde entrar. Em muitos debates, ativistas falaram para eles mesmos e houve painéis no Pavilhão do Brasil – um prédio de três andares dividido com mais três países – em que não havia ninguém na plateia.

A COP foi uma grande feira de negócios, com 2.456 lobistas do setor de combustíveis fósseis, segundo a contagem de uma rede de ONGs chamada Kick Big Polluters Out (Expulse os poluidores), e 340 representantes de empresas do agronegócio, contados pelo site DeSmog, incluindo a JBS. Os Emirados Árabes Unidos reprimem protestos de rua e o acesso à conferência só era permitido para pessoas credenciadas pela ONU. Assim, apenas elas podiam participar de manifestações, e em lugares previamente designados.

Susana Muhamad, ministra do Meio Ambiente da Colômbia, deseja que a COP-30 seja da América Latina, onde ‘a potência é a da natureza’. Foto: Thaier Al-Sudani/Reuters

Dubai, um dos sete Emirados, tem uma economia cada vez mais baseada em eventos de negócios, turismo de luxo e no mercado imobiliário. A COP aconteceu na Expo City, um parque temático que pretende simular uma “cidade do futuro” inaugurado em 2021. O lugar, afastado do centro comercial e hoteleiro de Dubai, é servido pela rede de metrô. A comida na Expo City era cara, com uma refeição básica custando o equivalente a 70 reais, mas banheiros e a conexão à internet eram irrepreensíveis. O cacique Ty’e Parakanã reparou que, “apesar da poluição” do ar da cidade, não havia lixo nas ruas nem fio pendurados nos postes. “A roupa não suja”, constatou.

Belém, com infraestrutura precária de hotéis e transportes, não poderá seguir o mesmo modelo. Lula brincou que na COP-30 as reuniões seriam realizadas debaixo de árvores e dentro de canoas. Mas não é só um problema do Brasil. Até a Alemanha alegou problemas orçamentários para sediar um evento dessa magnitude caso não houvesse acordo sobre a sede da COP-29 em 2024 – o Azerbaijão foi escolhido de última hora. A Alemanha, onde fica o secretariado da Convenção do Clima, é sempre a opção de última instância em caso de impasse na escolha do país anfitrião.

Em um dos seus boletins Eco, divulgados diariamente durante as COPs, a Climate Action Network perguntou se “essa farra de negócios petroleiros” era necessária. A rede de organizações socioambientais sugeriu a adoção de uma política de conflito de interesses – “Você chamaria empresas de tabaco para negociações para acabar com o fumo?”. Também defendeu a ideia de que a realização de COPs menores pode ser factível para mais países, que precisam usar o dinheiro que têm para enfrentar a crise climática.

O coletivo Comitê COP-30, recém-formado por organizações de jovens da Amazônia, entre elas a Tapajós de Fato, a Mandi e o Gueto Hub, pretende acompanhar as obras de infraestrutura na capital paraense. Eles temem que elas reforcem a segregação social da cidade, como costuma acontecer nos grandes eventos no Brasil. O coletivo tem a ideia de conseguir locais fixos em Belém para começar a debater com a população os temas que estarão nas negociações em 2025.

Tasneem Essop, veterana líder socioambiental sul-africana que é secretária-executiva da Climate Action Network, disse que será ótimo se o Brasil “quiser voltar ao básico, tratar da crise climática e não fazer uma exposição”. O simbolismo disso poderá ser positivo para as negociações. “Hoje há muitas iniciativas que são lançadas sem que a gente possa medir se vão contribuir, muito greenwashing”, afirmou, referindo-se a negócios e projetos que se vendem como “verdes”, mas não são. “Uma COP que volte ao básico deve tratar das pessoas afetadas pela mudança climática.”

Não é só o Brasil que trará para a América Latina o protagonismo sobre o clima. No final de 2024, a Colômbia receberá a 16ª Conferência de Biodiversidade da ONU. A ministra do Meio Ambiente colombiana, Susana Muhamad, foi uma das estrelas de Dubai por suas intervenções incisivas contra os combustíveis fósseis. Ela disse a SUMAÚMA ter ficado feliz porque o Brasil, “sob a liderança de Marina Silva”, reconheceu o problema. Sugeriu que Lula, que assumiu recentemente por um ano a presidência do G-20, formado pelas 20 maiores economias do mundo, lidere um acordo que acabe com novas frentes de exploração de fósseis e garanta o cumprimento do objetivo de redução de 43% das emissões mundiais até 2030. A ministra reafirmou a expectativa que compartilha com os movimentos sociais e povos originários da região: “Que a COP do Brasil seja a COP da América Latina, com todos esses temas e evidentemente com a nossa potência, que é a da natureza”.


Nossa cobertura em Dubai é uma parceria com a organização internacional Global Witness (@global_witness), que atua desde 1993 investigando, expondo e criando campanhas contra abusos ambientais e de direitos humanos em todo o mundo


Reportagem e texto: Claudia Antunes
Checagem: Douglas Maia e Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Malu Delgado (chefa de reportagem e conteúdo), Viviane Zandonadi (fluxo de edição e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefa)
Direção: Eliane Brum

© Direitos reservados. Não reproduza o conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação sem autorização escrita de SUMAÚMA