Jornalismo do centro do mundo

Mercado histórico Ver-o-Peso: esgoto entupido, insetos, roedores, insegurança. Ainda não há orçamento definido para a reforma completa de um dos cartões-postais de Belém. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Em dois anos e meio, Belém, capital do Pará, na Amazônia brasileira, vai sediar a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP-30). O tempo é curto para que as intervenções urbanísticas planejadas por conta da COP-30 – obras grandiosas de infraestrutura, turismo, mobilidade e logística – sejam suficientes para enfrentar o abismo socioambiental da capital mais antiga do norte do Brasil. Em novembro de 2025, a cidade amazônica pretende se apresentar ao mundo como um cartão-postal da sustentabilidade. Uma coleção de contradições e problemas, porém, pode comprometer a imagem que o governador Helder Barbalho (MDB-PA), o mais próximo de Lula entre os governadores da Amazônia, pretende vender ao mundo. Entre as contradições, desponta o fato de que a mineradora transnacional Vale é a financiadora de duas das principais obras anunciadas pelo governo do Pará: a construção do Parque da Cidade e a expansão do Porto Futuro em direção às docas. Ligada a dois dos maiores desastres ambientais da história do Brasil, o rompimento das barragens de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais, e acusada por povos indígenas, como os Awá Guajá, de violação da floresta e dos direitos de seus habitantes, a Vale representa tudo o que o planeta precisa superar para controlar o aquecimento global e que estará em debate no maior evento do clima, que pela primeira vez será realizado numa capital da Amazônia brasileira.

Vilões do clima que financiam cúpulas do clima têm sido uma marca desses eventos. Tudo indica que a COP na Amazônia brasileira seguirá o mesmo rumo. “A agenda global do clima tem sido gradativamente e de maneira muito visível capturada pelas grandes corporações”, afirma Marcela Vecchione Gonçalves, professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará (UFPA). Especialista em pesquisas sobre financiamento e regulação de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, Marcela conta que ficou chocada ao ver, em 2015, o painel de patrocinadores da COP-21, na França, quando foi assinado o Acordo de Paris, em especial nos eventos paralelos [side events]. “E quem eram esses patrocinadores? Empresas de energia, empresas petrolíferas e empresas do agronegócio. Estavam todas lá, não era nada escondido.”

O governador Helder Barbalho (MDB-PA) e o presidente Lula (PT) mostram o papel que oficializa Belém como sede da COP-30. Ao seu lado está o prefeito da cidade, Edmilson Rodrigues (PSOL-PA). Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

A professora aponta a contradição evidente: “Se a gente observa quais são as fontes de emissão [de gases do efeito estufa] e a que setores esses principais patrocinadores da COP estão ligados, eles são justamente os responsáveis pelo maior nível de emissões globais”.

No caso da Vale, a empresa transnacional mantém no Pará “o maior complexo minerador” do país, com minas, usina, logística ferroviária e portuária. A justificativa do governo é que a empresa garantirá a celeridade e os recursos necessários para a construção e o andamento das obras. Comandado por Helder Barbalho, o mais jovem representante do controverso clã Barbalho, o governo do Pará também sustenta que a Vale tem uma dívida com o estado que precisa ser reparada.

A maior mina de minério de ferro a céu aberto do mundo é da Vale e fica em Carajás, no Pará. Foto: Daniel Beltrá / Greenpeace

Ao longo de mais de 80 anos de atuação, a empresa tem deixado marcas de violações ambientais, sociais e trabalhistas. A Articulação Internacional dos Atingidos e Atingidas pela Vale, rede criada em 2009 com o apoio de acadêmicos, ambientalistas, ONGs e associações comunitárias, elaborou em 2021 um relatório em que aponta dívidas e violências não reparadas nos territórios explorados pelo gigante da mineração.

Por meio de sua assessoria de imprensa, a Vale informou que as obras do Parque da Cidade têm valor estimado em 400 milhões de reais e as do Porto Futuro II em 270 milhões de reais. “A companhia aderiu ao programa estadual Estrutura Pará. Iniciativa que visa fortalecer a parceria público-privada e as ações do estado voltadas para o desenvolvimento e a ampliação da oferta e da prestação de serviços à população”, afirmou em nota a SUMAÚMA. “O arranque de obras [se] iniciou em maio. A fase de detalhamento dos projetos está em andamento. Os próximos passos são a contratação de fornecedores e a execução das obras civis.”

Para a pesquisadora da UFPA, será preciso observar com atenção como essa simbiose entre empresas e financiamento da agenda do clima vai funcionar na Amazônia, “principalmente com o sequestro da agenda da bioeconomia e da biodiversidade”. “Será muito interessante perceber quem serão os maiores patrocinadores da COP aqui em Belém”, afirma. Até este momento, com base em notícias da prefeitura e do governo estadual, a Vale é a mais controversa financiadora do setor privado.

Uma coleção completa de problemas ambientais

O chamado “Polígono COP-30”, área ampla de cerca de 30 quilômetros quadrados, compreende desde a Cidade Velha até o bairro do Marco, passando pelo Mercado Ver-o-Peso, pelos bairros de São Brás, Sacramenta e Guamá e pelo Aeroporto Internacional de Belém – e concentra os bairros com os imóveis mais valorizados da capital. Esse polígono isola uma Belém que jamais poderia ser referência de boas práticas ambientais: quase 25% da população da capital não contava com abastecimento de água potável nas residências até 2021, o último ano com dados disponíveis. De acordo com dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), 83% da população não tem acesso a esgotamento básico em todo o município. E apenas metade dos 3,4 mil metros cúbicos de esgoto coletados anualmente tem sido devidamente tratada, também segundo dados oficiais de 2021. Conforme a própria prefeitura de Belém, atualmente 15% da população não tem sequer acesso a serviços de coleta de lixo.

Vila da Barca: no Polígono da COP-30, a comunidade ribeirinha às margens da Baía do Guajará é um enclave de resistência. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

A escolha da capital paraense pela Organização das Nações Unidas (ONU) para sediar o mais importante evento ambiental do planeta, em 2025, cria uma janela de oportunidade política para o governador Helder Barbalho (MDB-PA), o prefeito de Belém, Edmilson Rodrigues (PSOL-PA), e, especialmente, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que ancora boa parte de sua credibilidade internacional no discurso da “sustentabilidade”.

Os políticos prometem aproveitar o curto período no horizonte para “modernizar” a cidade, com a troca do asfalto nas avenidas de maior fluxo por uma pavimentação mais resistente e menos baseada em petróleo, a colocação de postes metálicos com placas solares, fiação elétrica subterrânea e uma frota de ônibus (são 1.300 hoje) elétricos ou a gás. Os mais de 2,3 milhões de pessoas que vivem na Região Metropolitana de Belém, porém, podem ter dificuldade de visualizar os possíveis impactos positivos da COP no seu cotidiano.

Nesta reportagem, SUMAÚMA mostra cenas e conflitos de uma parte de Belém que, na prática, está totalmente afastada do debate sobre as intervenções na paisagem urbana e social que a Cúpula do Clima poderá gerar. No entanto, essas populações são e serão as mais impactadas pela crise climática – as pessoas mais pobres e moradoras de áreas periféricas.

INFOGRÁFICO: RODOLFO ALMEIDA/SUMAÚMA

No meio do caminho tinha um lixão – e então outro, e talvez outro

A ex-catadora Lika sempre viveu no Lixão do Aurá, um dos símbolos mais extremos da desigualdade e dos problemas socioambientais de Belém. Foto: João Paulo Guimarães

Distante do Polígono da COP-30 tanto na geografia como na pirâmide social, a ex-catadora Eliane Gomes do Nascimento, conhecida como “Lika”, ainda não sabe dizer o que significa o evento ambiental marcado para 2025 nem qual é sua função. Por mais de 30 anos, ela cresceu e viveu dentro do Lixão do Aurá. Hoje com 42 anos, Lika testemunhou a implantação do aterro até seu fechamento. Atualmente, a ex-catadora vive na comunidade de Jerusalém, no bairro de Águas Lindas, a poucos minutos do local onde o aterro se encontra. O lixão fica no município de Ananindeua, que faz parte da Região Metropolitana de Belém e é o segundo maior do Pará. Ali o atual governador, Helder Barbalho, começou sua carreira e foi prefeito por dois mandatos.

O Aterro Sanitário do Aurá é um dos símbolos mais extremos da desigualdade e dos problemas socioambientais que ainda não foram enfrentados na cidade e na região metropolitana. Conhecido como Lixão do Aurá, ele foi instalado no fim de 1989, perto da rodovia Belém-Brasília (BR-316), que interligou a capital paraense ao restante do país por via terrestre e para onde a cidade cresceu a partir da segunda metade do século 20. Fechado 25 anos depois, em 2015, por não cumprir as normas previstas na lei federal de Resíduos Sólidos, o lixão funciona, atualmente, para a descarga de entulhos dentro da Área de Proteção Ambiental de Belém.

Apesar de seu fechamento, ainda hoje centenas de famílias continuam a viver dos entulhos encontrados, separados e vendidos a compradores dentro da área do antigo lixão. Lika eventualmente retorna ao aterro para retirar folhas de compensado e tecidos, que usa como paredes para separar os cômodos da nova casa, erguida na comunidade próxima.

“Meu pai e minha mãe vieram para cá, fomos os primeiros moradores daqui. Nós tínhamos, nessa época, forno de carvão, pois o papai fazia carvão para vender e se manter”, conta. “A gente também colhia frutas, pois aqui na comunidade em que a gente mora tem umas áreas com bastantes frutas. Com o passar do tempo, começaram a abrir esse lixão.” A casa em que Lika passou a viver com os pais mais cinco crianças foi levantada com pedaços de madeira, cobertos com papelão e lona preta. Ao crescer dentro do lixão, dia e noite Lika retirava dele a alimentação da família, as vestimentas, a mobília e os utensílios usados em casa.

Por cima das toneladas de resíduos do aterro, Lika conviveu cotidianamente com adultos, crianças e velhos expostos à contaminação e sujeitos ao adoecimento, em busca de sobras de comida e do mínimo sustento. Garrafas PET, vidro, materiais de ferro, plástico, borracha e madeira eram separados pelas famílias de dentro dos sacos despejados pelos caminhões. Com jornadas extenuantes de trabalho, ela conta que muitos morreram esmagados por tratores, cujos condutores, sem saber, passavam por cima de corpos cobertos por papelão. O cobertor improvisado que os protegia do frio também os expunha à morte.

O fechamento do Aterro do Aurá não representou o fim do ciclo de indignidades. Outro foi aberto no município de Marituba, a 23 quilômetros de Belém, com prazo para encerrar as atividades em agosto deste ano. Há a possibilidade de que um terceiro seja implantado pela mesma empresa gestora do Aterro de Marituba, a Guamá Tratamento de Resíduos, no município de Bujaru. A empresa anunciou que pretende instalar ali um complexo industrial composto de aterro, usina de triagem de resíduos recicláveis, pátio de compostagem, usina termoelétrica e Centro de Educação Ambiental.

Em agosto do ano passado, moradores do Bujaru e do Acará, municípios próximos à região metropolitana, protestaram contra a instalação do projeto, que, segundo eles, poderia afetar 17 comunidades quilombolas e áreas com nascentes e outros recursos essenciais à vida na região. Com a escolha de Belém para sede da COP-30, a promessa dos governos estadual e municipal é de finalmente criar um serviço de coleta seletiva na cidade. Até hoje, não há nada além de poucas iniciativas particulares, isoladas ou oferecidas por cooperativas. A prefeitura já abriu licitação para implementar um sistema organizado de coleta seletiva na capital antes da COP.

O massacre dos condomínios de luxo sobre a Belém ribeirinha

Vila da Barca: faixa de casas de palafitas sombreadas por condomínios de luxo teve projeto de urbanização iniciado em 2003 e nunca concluído. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Como dotar Belém, nesse curto espaço de tempo, de infraestrutura adequada para receber cerca de 60 mil visitantes – média de público estimada pelas autoridades para a COP? A pergunta paira sobre a capital do Pará. Um dos projetos prevê a dragagem do rio, na Baía do Guajará, com o objetivo de receber transatlânticos que serviriam de hotéis aos participantes do evento. Seria uma maneira de driblar as carências de Belém no setor hoteleiro para um evento desse porte. De acordo com levantamento feito pela Associação Brasileira da Indústria de Hotéis, Belém teria apenas cerca de 12 mil leitos para atender ao evento, sendo necessário criar pelo menos 48 mil leitos adicionais.

A questão mais importante, porém, é impedir que a COP seja usada para expulsar a população ribeirinha que ainda resiste numa Belém que se verticaliza, na guerra persistente contra a natureza. Cortada e cercada por rios e igarapés, a capital do Pará é dividida em uma porção continental, que corresponde a cerca de 35% do território, e outra parte fragmentada em 39 ilhas, a maior parte delas com extensas áreas de floresta. Na parte continental, a quantidade de água é tamanha que faz com que cerca de 50% dos terrenos sejam alagadiços. A presença da natureza, na forma de rios, igarapés e cursos de água, vem sendo negada pelos projetos urbanísticos, cujos custos com aterramento e drenagem são sempre elevados.

Dentro do Polígono da COP-30 e próxima ao novo Parque Urbano Igarapé São Joaquim, a Vila da Barca se mantém há quase um século como uma comunidade ribeirinha encravada nas margens da Baía do Guajará. Esse enclave de resistência, hoje com cerca de 80 mil metros quadrados, tem sido cada vez mais sombreado por dezenas de condomínios luxuosos erguidos na Avenida Pedro Álvares Cabral ou em outro reduto da memória, as ruelas de casas populares construídas no século 19 no bairro do Telégrafo.

Conhecido pela extensa faixa de casas de palafitas, o espaço teve um projeto de habitação e urbanização iniciado pela prefeitura de Belém em 2003. Não concluído até hoje, o projeto foi retomado em 2021 com o retorno de Edmilson Rodrigues (PSOL) como prefeito da capital. De acordo com a assessoria de comunicação da prefeitura, a promessa é entregar, até janeiro de 2024, “198 moradias para famílias que aguardam há anos pelo projeto”.

Em meados do século 20, quando a cidade começou a se verticalizar e a se expandir em direção às novas rodovias, o afastamento dos rios foi se tornando cada vez mais evidente. A partir do final dos anos 1990, a parte continental de Belém teve uma muralha de prédios construída em suas margens, contrapondo-se às formas de organização das dezenas de ilhas, em que as casas ribeirinhas se voltam para a baía ou para os furos (canais de água) e igarapés e compõem vilas e comunidades a partir do beiradão. Assim como a Vila da Barca, as primeiras periferias de Belém foram “empurradas” para as áreas de “baixada”, terrenos normalmente úmidos e alagáveis, típicos de várzea, que raramente recebem qualquer esforço de saneamento do poder local.

“A gente sabe que a Vila da Barca reside no metro quadrado mais caro da cidade de Belém, então o fato de o projeto não ter andado tem a ver também com o poder imobiliário”, diz o artista plástico Maurileno Sanches, ex-presidente da Associação dos Moradores da Vila da Barca. Ele não tem dúvida de que a demora na conclusão do programa de habitação está relacionada à alta especulação imobiliária na área: “A nossa comunidade é um sinal de resistência dentro de Belém, então a gente passa por muitos desafios para ainda estar presente nesse lugar”.

Maurileno é santeiro, ofício aprendido com um tio e o pai, que eram mestres no restauro de santos, igrejas e construções de estilo barroco e neoclássico, como a Igreja da Sé e o Theatro da Paz. Atividades de pintura e marcenaria como as realizadas pela família de Maurileno começaram também a ser desenvolvidas por indígenas que foram convertidos em artesãos nos moldes das oficinas do Colégio Santo Alexandre, organizadas por jesuítas, ainda nos séculos 17 e 18.

Para o artista plástico Maurileno Sanches, o programa de habitação da Vila da Barca não avança por causa da especulação imobiliária. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Contrariando o estigma da pobreza e da violência, a Vila da Barca abriga hoje jovens artistas, assim como estudantes universitários, trabalhadoras domésticas, pequenos comerciantes, pescadores e feirantes. Por meio de oficinas em espaços como o Núcleo Curro Velho, vizinho à Vila da Barca, Maurileno continua tentando ensinar às novas gerações as mesmas técnicas que aprendeu com seus pais e outras práticas de escultura que desenvolveu em décadas seguintes. Segundo ele, a formação artística e cultural de crianças e jovens tem o poder de transformar o bairro e a vida dos que nele vivem. Projetos urbanísticos desenvolvidos para a COP, defende o santeiro, deveriam apostar no potencial de atração de turistas para locais como a Vila da Barca e suas tradições.

Ver-o-Peso, mercado histórico, tem esgotos entupidos e ratos como moradores

Com 396 anos completados neste ano, o complexo do Ver-o-Peso passará por uma reforma completa, segundo a prefeitura. Fotos: Alessandro Falco/SUMAÚMA

A maior parte dos projetos anunciados para preparar Belém para a COP será financiada pelo governo federal. Além da dragagem no Porto de Belém e da ampliação do aeroporto internacional, foram listados pelos gestores públicos outros seis projetos, destinados à reforma de pontos turísticos históricos e à construção de parques. O presidente Lula esteve na capital paraense no dia 17 de junho e assinou o convênio para o início das obras do Parque Urbano São Joaquim, estimadas em 150 milhões de reais. O dinheiro deverá sair do Ministério das Cidades, sob o comando de Jader Barbalho Filho, irmão do governador e outro membro do clã que está no domínio da política paraense nos últimos anos. Lula também assinou um protocolo de intenções para a reforma do Ver-o-Peso, ainda sem orçamento definido, segundo a Secretaria Municipal de Urbanismo.

“O Ver-o-Peso é um cartão-postal aqui de Belém e, [quando] você olha, está parecido com uma favela”, reclama a cozinheira Osvaldina Ferreira, do setor de alimentação da feira, referindo-se à falta de cuidado do poder público com o mercado histórico de Belém. Com 75 anos de idade e 35 de trabalho na feira, ela sustenta a casa com a venda de peixe frito, atividade hoje compartilhada com as filhas e as netas. Atualmente a família trabalha em um boxe de venda de peixe, no setor de alimentação da feira.

A cozinheira Osvaldina Ferreira reclama da falta de cuidado do poder público com o Ver-o-Peso: ‘parece uma favela’. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Com 396 anos completados neste ano, o complexo do Ver-o-Peso passará por uma reforma completa, segundo a prefeitura. Em contraste com as imagens veiculadas junto com a assinatura do protocolo de intenções do projeto pelo presidente Lula, no dia 17 de junho, a situação atual é de precariedade. Logo na entrada da feira aberta, que ocupa um espaço que vai da Estação das Docas à área do cais e é conhecida como Pedra do Peixe, os visitantes precisam se desviar das dezenas de vendedores ambulantes que se aglutinam nas vias de acesso e de passagem, eles também lutando pela sobrevivência. Por sua extensão e diversidade, a feira é alardeada como a maior da América Latina por políticos, jornalistas, artistas e moradores da cidade.

O complexo do Ver-o-Peso compreende duas feiras, dois mercados, as docas e um conjunto de lojas. Com grande oferta de produtos da floresta e diversidade de pescados que alcançam a cidade pela Baía do Guajará, formada pelos rios Guamá e Acará, responde pelo abastecimento direto de casas, restaurantes e supermercados da capital. De forma indireta, serve como ponto de uma rede mais extensa de mercados e feiras da cidade e dos municípios vizinhos. Por ali também circulam, todos os dias, dezenas de linhas de ônibus com milhares de habitantes de toda a Região Metropolitana de Belém.

Roedores e insetos, assim como problemas com a segurança e a iluminação, se tornaram comuns na feira. Em vários setores, como o de refeições, conhecido pela venda de lanches rápidos e de peixe frito com açaí, frequentado por turistas, os próprios feirantes se organizam para tentar resolver dificuldades como o vazamento de água e o entupimento de esgotos.

“De modo geral, há um ressentimento grande por conta do descaso da prefeitura nos últimos anos. Mas nossa expectativa é que a reforma que está sendo anunciada seja feita com diálogo, aproximação e interesse”, arrisca o feirante Dalci Cardoso, de 73 anos. Ele vende, há 30 anos, sandálias de couro com solado de borracha reciclada de pneus.

‘Há um ressentimento grande (…), mas nossa expectativa é que a reforma seja feita com diálogo e interesse’, diz o feirante Dalci Cardoso: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Nos bairros históricos da Campina e da Cidade Velha, entre os quais o Ver-o-Peso se encontra, casarões que representam a arquitetura de diferentes séculos e estilos desabam, sucumbem a incêndios ou são transformados em depósitos de produtos importados. Roubados de sua memória arquitetônica, os terrenos maiores são convertidos em estacionamentos, numa Belém que é desfigurada dia após dia.

Enquanto isso, a alguns minutos dos dois bairros, o Parque Urbano Porto Futuro deve ser ampliado pelo governo do estado em direção à área das docas, na orla. A infraestrutura deve beneficiar, mais uma vez, os bairros do Umarizal e do Telégrafo, que hoje possuem as maiores e mais luxuosas torres residenciais, com os imóveis supervalorizados da cidade.

INFOGRÁFICO: RODOLFO ALMEIDA/SUMAÚMA

A expectativa de quem defende a cultura às vezes só com amor

No centro histórico, entre os bairros da Campina e Cidade Velha, a galeria Kamara Kó, mantida pela produtora cultural Makiko Akao e pelo fotógrafo e educador Miguel Chikaoka, é um dos vários espaços culturais da região. Seu nome, em Tupi, tem inspiração no povo Wajãpi e remete à ideia de “amigos verdadeiros” ou “irmãos”. Junto com a Cidade Velha, o centro histórico reúne casas, igrejas e edifícios construídos a partir do século 17, dividindo-se entre zonas residenciais e uma área de compra e venda de produtos e serviços, de perfil mais popular, que ficou conhecida como Bairro do Comércio.

De origem paulista e japonesa, Miguel e Makiko participaram ativamente, durante os anos 1980, de um movimento fotográfico que culminou no reconhecimento da fotografia produzida em Belém no cenário da produção cultural brasileira. Makiko foi uma das criadoras do evento chamado Circular Campina Cidade Velha, que busca atrair visitantes da própria cidade e de fora dela para dezenas de espaços culturais localizados nos dois bairros históricos. Ela defende a ideia de que, com mais incentivos à economia criativa, o mapa do evento, realizado a cada dois meses, poderia ser incorporado à agenda cultural e turística permanente da cidade. É esse tipo de intervenção urbanística, que favorece a história e a cultura, que eles gostariam de ver incentivado pela preparação da COP. “Melhorias no calçamento, coleta de lixo regular e policiamento já ajudariam bastante no aumento da visitação aos espaços ligados à economia criativa da cidade”, argumenta a produtora.

No curso da história, essa parte central de Belém foi festejada em documentos deixados por cientistas, intelectuais e artistas. “Quero Belém como se quer um amor. É inconcebível o amor que Belém despertou em mim”, confidenciou Mário de Andrade, em carta a Manuel Bandeira, após sua passagem pela cidade em maio de 1927, vindo do Rio de Janeiro pela costa brasileira. O escritor teria se encantado com o simples ato de “chupitar um sorvete de cupuaçu, de açaí” no terraço com inspiração parisiense do Grande Hotel, inaugurado em 1913 e demolido a marretadas pelo interventor da ditadura no Pará, coronel Alacid Nunes, na década de 1970.

Aos refugiados ambientais, a notícia da COP não chegou

Fora do Polígono da COP-30, a ilha de Caratateua, sede do distrito de Outeiro, fica a cerca de 30 quilômetros do centro mais antigo de Belém. O casal Jhonny Rivas e Mariluz Nunez, indígenas do povo Warao, conta que a vista do rio os aproxima da terra natal, onde viviam em casas de palafitas. Eles moram hoje em uma vila ocupada na Avenida Beira-Mar, no bairro de São João do Outeiro. Os grupos da etnia Warao, que significa “povo das águas”, migraram da Venezuela a partir de 2014 e somam atualmente cerca de 600 pessoas somente em Belém, chegando a 800 em toda a região metropolitana.

Indígenas do povo Warao, Jhonny Rivas (foto) e família são refugiados ambientais. Eles vivem em uma vila de chão batido sem esgoto sanitário. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Chegar à ilha é possível tanto por via fluvial quanto pela Rodovia Augusto Montenegro, ao longo da qual a cidade se expandiu, a partir de 1975. O crescimento nessa direção continental aconteceu primeiro com a construção de conjuntos habitacionais, financiados pelo Estado, e com ocupações populares, chamadas de “invasões”. Depois, ampliou-se com a construção de condomínios de casas e edifícios de diferentes padrões. Hoje, a rodovia concentra o Estádio do Mangueirão, shopping centers, igrejas e órgãos públicos.

Na vila de chão batido ocupada pela família paterna de Jhonny, casas de madeira foram construídas de modo informal e sem acesso direto à água ou ao esgoto sanitário. Em seu país de origem, Jhonny, que vem de uma família de pescadores, chegou a tentar a carreira de jogador de futebol. Mariluz, filha de um enfermeiro e da parteira da comunidade de Jotajana, trabalhava na limpeza de um consultório médico. Entre as pessoas que formam os 25 núcleos pertencentes à mesma família, são poucas as que falam português ou espanhol, o que dificulta o acesso a informações sobre o que acontece na cidade, como a escolha de Belém para sede da COP-30.

Segundo pesquisa da antropóloga Rosa Acevedo-Marin, uma das coordenadoras do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia, o estado de Delta Amacuro, de onde o casal partiu com a família, tem sido marcado pela expulsão de povos indígenas de suas terras, como resultado de conflitos com empresas e projetos de exploração de petróleo, gás e minérios. Todas essas atividades têm sido incentivadas por políticas econômicas do Estado venezuelano desde os anos 1960.

A ilha de Caratateua está fora do Polígono da COP-30, no distrito de Outeiro, a 30 quilômetros do centro mais antigo de Belém. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Antes de se deslocarem para a capital do Pará, Jhonny e Mariluz tentaram as cidades de Boa Vista e Pacaraima, no estado de Roraima, na fronteira com a Venezuela. Depois, vieram de Manaus até Belém por barco, aonde chegaram sem dinheiro, cheios de fome e com dois filhos pequenos. Após 15 dias, seguiram para Fortaleza. Na capital nordestina, Mariluz teve a terceira filha. De Fortaleza, a família retornou a Belém e se mudou novamente para o município de Redenção, no sudeste paraense, onde Jhonny chegou a sofrer ameaças por conta da xenofobia, tendo inclusive ficado sob a mira de um revólver. Esse episódio foi o estopim para que decidisse retornar a Belém com a família.

De volta à capital em 2020, eles matricularam os filhos na escola. Mas as crianças da família, assim como muitas outras, enfrentam dificuldades por não ter fluência em português e em espanhol. A ausência de professores ou tradutores do idioma Warao é uma barreira à adaptação e ao aprendizado das crianças matriculadas.

A experiência de morar na rua – “muito ruim”, segundo Jhonny – faz com que Mariluz se sinta protegida em casa, de onde ela e outras famílias pouco saem. Mariluz conta que, no Brasil, as mulheres Warao sofreram em muitas ocasiões com o assédio sexual de homens, que cometem gestos obscenos, como o de expor os órgãos sexuais ao avistá-las na rua. “Graças a Deus, agora estamos tranquilos em nossas casas”, diz Mariluz, que eventualmente se desloca até o Ver-o-Peso em busca de materiais com os quais as famílias Warao produzem colares, pulseiras e outros adereços coloridos em formatos variados, como os de borboleta e jacaré.

Ilha de Caratateua: falta espaço para cultivar alimentos como batatas e macaxeira; a vida é mais cara e sofrida. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Bacharel em ciências, Mariluz é uma das poucas do grupo que sabem ler e escrever. Além de lutar pelo acesso das crianças a escolas públicas, ela está engajada em debates e reivindicações dos refugiados indígenas por direitos. Apesar de não discutirem sobre assuntos como clima e meio ambiente na vila em que moram, as famílias Warao reconhecem muito bem a importância da terra e da água para ter comida e saúde. E relatam, com base no próprio testemunho de vulnerabilidade e sofrimento, a experiência do êxodo provocado por grandes projetos agrominerais na Pan-Amazônia.

A falta de espaço para cultivar alimentos como batata e macaxeira também torna a vida mais cara e a alimentação mais restrita. “Como indígenas, todos estamos sofrendo. Sem dinheiro, como vamos comer? Sem trabalho, como vamos sustentar nossos filhos?”, questiona Mariluz. A COP-30 é, para aqueles que mais dependem dos acordos que serão firmados em ambientes artificialmente climatizados, mais uma palavra numa língua que não compreendem.

Lula no evento que oficializou Belém como sede da COP-30 em 2025. Foto: Alessandro Falco/SUMAÚMA

Sem garantir o acesso ao debate, a COP poderá produzir apenas imagens sem substância

Os políticos envolvidos na organização da COP asseguram que as obras deixarão um legado – um discurso que o país ouviu também na realização da Copa de 2014 e da Olimpíada de 2016. Mas os dois eventos deixaram um rastro de corrupção e de famílias expulsas para a construção de estádios e outras infraestruturas. Questionada sobre a expectativa de recursos e empregos movimentados pelos novos projetos, a prefeitura de Belém informou que “ainda não existem valores fechados e que, por enquanto, os governos federal, estadual e municipal estão selecionando e formatando as obras necessárias para realizar o evento e preparar a cidade”.

Somente os quatro projetos divulgados na sequência do anúncio da ONU, de acordo com a prefeitura, somariam quase 800 milhões de reais, vindos de várias fontes, uma delas a mineradora Vale. “O conjunto de novas obras já possui um imediato efeito na geração de empregos da construção civil, por exemplo. E, indiretamente, nas prestadoras de serviços para empresas que tocarão as obras”, alegou o secretário municipal de Controle, Integridade e Transparência, Luiz Araújo.

INFOGRÁFICO: RODOLFO ALMEIDA/SUMAÚMA

Há duas décadas e meia, o professor titular da Universidade Federal do Pará Saint-Clair Cordeiro da Trindade Júnior, especialista em geografia humana e políticas urbanas, estuda o processo de expansão de Belém em metrópole, marcado por grandes intervenções urbanísticas no centro da cidade desde meados dos anos 1990. As obras da COP, enfatiza, precisam ter essa visão articulada e impactar positivamente outras políticas, como as de moradia e mobilidade.

Intervenções urbanísticas realizadas para receber grandes eventos tendem a ignorar o uso popular dos territórios, sendo “concebidas como atrativas para o turismo, para os investimentos econômicos”, sem que sejam levadas em conta as “relações cotidianas e seus territórios”. Sem investimentos sociais não se fortalece o turismo, alerta o professor. A própria população, de acordo com Saint-Clair, tem de usufruir da cidade: “É preciso olhar para os espaços ligados à vida cotidiana para que as pessoas que vivem aqui não precisem pagar para usar tudo o que existe neles”.

Lika, do Lixão do Aurá, trabalha atualmente como decoradora de festas de aniversário e formatura e faz cursos sobre como gerenciar e manter um brechó junto com outras mulheres. Somente depois de adulta, em um passeio organizado pela associação civil Pará Solidário, Lika comeu pela primeira vez em um restaurante, conheceu shopping centers e visitou pontos turísticos de Belém. Nem ela nem as mulheres ao lado de quem luta por uma vida com menos lixo – e com menos pessoas tratadas como restos – acessam as discussões sobre meio ambiente e direito à cidade. Mas deveriam – ou uma Cúpula do Clima na Amazônia urbana servirá apenas para um greenwashing na imagem de políticos locais e corporações transnacionais – o “banho verde” que acontece quando pessoas e organizações recorrem a estratégias enganosas de propaganda e marketing para se passar por defensoras socioambientais e tirar vantagem disso.


 
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Julia Sanches e Diane Whitty
Edição de fotografia: Marcelo Aguilar, Mariana Greif e Pablo Albarenga
Montagem da página: Érica Saboya

Na maré-baixa, barcos de diversos estados do país encalham aos fundos do mercado Ver-o-Peso, em Belém, na Amazônia brasileira. Foto: Alessandro Falco/Sumaúma

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