Depois de ter passado 62 horas ininterruptas resistindo à confusa correnteza das águas que afogaram seu bairro, o pintor Moisés de Carvalho, 43 anos, finalmente entendeu que o curso do rio que banhou sua infância já não era mais o mesmo. Foram duas noites e três dias sozinho, ilhado no teto de sua casa – o único local da residência que a água não alcançou –, aguardando a descida dos quase 30 metros de elevação do rio Taquari. O mesmo rio que, na sua memória, recebia com movimentos suaves os moradores da região. “Eu lembro bem. Lá a gente tomava banho e pescava. Mas agora não dá. Primeiro porque não tem mais peixe. Segundo porque o rio de hoje a gente não conhece mais. Vivo há quatro décadas aqui, desde que nasci. Nunca tinha visto nada igual”, conta.
Moisés mora em Lajeado, uma das cidades do Vale do Taquari, no Rio Grande do Sul, região Sul do Brasil, que foram atingidas no início de setembro por intensas tempestades seguidas de uma enchente histórica. O rio que dá nome ao vale subiu tanto que alcançou a segunda maior marca de que se tem registro – 29 metros e 62 centímetros – no município de Estrela, localizado no outro lado da margem que banha Lajeado.
A cheia do Taquari aconteceu na esteira de outros eventos climáticos extremos no Sul do Brasil e foi concomitante com uma das secas mais severas já registradas na região Norte – uma situação dramática que tem se estendido há semanas por diversos estados da região amazônica.
No Rio Grande do Sul, em junho, um ciclone extratropical passou pela costa, deixando 16 mortos. Já na segunda quinzena de julho, outro ciclone arrastou consigo pelo menos mais três vidas na mesma região (além de uma em São Paulo e outra em Santa Catarina). No início de setembro, dezenas de cidades gaúchas ficaram submersas com as enchentes. Milhares de moradores perderam suas casas e pelo menos 50 pessoas morreram ao ser levadas pela correnteza.
A destruição em Muçum, município do Rio Grande do Sul, um dos mais atingidos pelo ciclone e pelas fortes chuvas na região. Foto: Jeff Botega
O pedido de ajuda de algumas delas ainda ecoa na memória de Moisés: “As noites eram muito confusas. Só se ouvia o barulho forte da correnteza e os gritos e pedidos de socorro. De repente, tudo acalmava. Eram horas de silêncio”. Esse silêncio, Moisés descobriu após ser resgatado, era o grito abafado daqueles que não sobreviveram.
Enquanto o Sul lutava para não ser submerso pela água, a falta dela na região Norte começava a ganhar contornos extremos. No final de setembro, o governo do Amazonas decretou situação de emergência em 55 municípios devido ao agravamento da estiagem e ao aumento dos focos de incêndio no estado, que alcançou o pior índice de queimadas do ano. Além do Amazonas, Acre, Rondônia e Roraima vêm enfrentando situação crítica por causa da seca prolongada e da baixa no nível dos rios. O rio Amazonas, um dos maiores cursos de água do mundo, já havia baixado impressionantes 7,35 metros no final de setembro (a média de vazão dos últimos 20 anos em época de seca é de 4,38 metros). Isso tem levado alguns de seus afluentes, como o rio Tefé, a praticamente secar. Outros estão com temperaturas tão altas que a vida dos animais fica comprometida.
O transporte de comida e de pessoas está prejudicado, e os ribeirinhos já sofrem com a insegurança alimentar. No rio Solimões, a terra hoje emerge em grandes extensões que antes eram correnteza, freando a vida daqueles que nascem guiados pela fluência da água. “Na época do meu pai, ele contava que um dia esse rio iria mudar. Agora eu vejo que ele tinha razão”, diz a ribeirinha Ruth Martins, de 50 anos.
Moradora da Reserva Mamirauá, no município de Uarini, interior do estado do Amazonas, ela conta que há algumas décadas era possível estacionar o barco na beira da sua comunidade. Hoje, em época de seca, é preciso percorrer um trajeto de pelo menos 40 minutos a pé, sobre a terra escaldante. “A reserva, que tinha sido criada à beira do rio, agora está muito distante da água. A quentura aqui está muito grande. Nunca vi nada tão seco, um clima tão diferente. Estamos tendo que comprar água para beber, porque a do rio está empoçada e a da chuva pode fazer mal à nossa saúde, de tanta fumaça que tem no ar”, diz.
Queimada na floresta no município de Canutama, Amazonas, registrada em agosto: destruição e desmatamento avançam de forma intensa. Foto: Marizilda Cruppe/Greenpeace
O cenário é tão grave que a seca se encaminha para um trágico recorde histórico e, de acordo com o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), do governo federal, tem previsão de se estender pelo menos até dezembro. Pelos próximos meses, a situação em 38 dos mais importantes rios da Amazônia deve permanecer crítica, com vazões abaixo das médias históricas. Já as chuvas intensas no Sul do país devem continuar causando estragos até o final de 2023. “Não sei se isso que está acontecendo é coisa do homem ou da natureza. Só sei que, do jeito que as coisas estão, vai piorar, né?”, indagou Moisés ao relatar sua dramática experiência com a cheia do rio Taquari.
Somos natureza, mas há muito nos esquecemos disso. E talvez esse seja o motivo pelo qual responder à pergunta de Moisés é tão difícil. “Isso que aconteceu é coisa da natureza, Moisés, e foi liderada por um de seus bichos mais destrutivos: o homem”, explico.
De fato, hoje a ciência já comprovou que é por causa do homem que o mundo está cada dia mais quente – mais precisamente 1,1 grau Celsius acima da temperatura média na era pré-industrial. E essas chuvaradas que acumulam toda a precipitação de um mês em apenas um dia, assim como as secas que se prolongam mais do que muitas vidas podem suportar, têm tudo a ver com isso.
Com o aumento da temperatura planetária, vários processos climáticos são afetados, entre eles o ciclo de evaporação da água e a absorção do calor pelo solo. A intensificação da evaporação, por exemplo, potencializa a formação e a força das chuvas em certas regiões, tornando-as mais propensas a tempestades. Em outras áreas, aumenta os períodos de seca.
Barqueiro observa cenário desolador com a morte de peixes no lago Piranha, em Manacapuru, Amazonas, região afetada pela seca do rio Solimões. Foto: Bruno Kelly/Reuters
O mais recente relatório publicado pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) já demonstrou que a frequência e a intensidade desses eventos estão maiores em um mundo mais quente. Mas, assim como qualquer fenômeno da natureza, tanto as enchentes no sul como as secas no norte são consequência de uma combinação de fatores que, na medida em que se entrelaçam, dão dimensões catastróficas a eventos antes corriqueiros. “Esses eventos extremos que ocorrem no Brasil têm a assinatura da mudança climática. O planeta está mais quente, os oceanos estão anomalamente mais quentes e o El Niño entrou neste ano intensificando todos esses eventos”, explica o climatologista Francisco Eliseu Aquino, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
De acordo com o especialista, o El Niño – evento climático que ocorre em média a cada 3 ou 5 anos, quando as águas do Pacífico, próximo à linha do Equador, passam por um aquecimento acima do normal – é causado por um enfraquecimento dos ventos alísios, que sopram constantemente dos trópicos para o Equador e que, por serem muito úmidos, provocam chuvas. O resultado é um período mais seco na região Norte do país. Só que, do outro lado da maior floresta tropical do mundo, o oceano Atlântico Norte também vem passando recentemente por um processo de aquecimento anômalo, o que dificulta a chegada de umidade na Amazônia e reduz a ocorrência de chuvas.
“Já na região Sul do país, o El Niño provoca uma mudança na circulação dos ventos da região tropical para a região polar do Hemisfério Sul e Norte. Essa mudança altera a circulação dos ventos em altitude, correntes de jato, e condiciona a formação de ciclones extratropicais, que acabam barrando por mais tempo as frentes frias na região, o que intensifica as tempestades. Soma-se a isso o fato de a América do Sul estar mais quente – este, de fato, foi o inverno mais quente já medido na região em mais de cem anos –, o que gera um processo de retroalimentação dessas tempestades severas”, explica Aquino.
Mas não para por aí. A destruição da Amazônia, que somente em 2022 perdeu 10.573 quilômetros quadrados de floresta por conta da ação predatória do homem, segundo relatório do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), diminui a capacidade que o bioma possui de espalhar umidade para outras regiões, desregulando as temporadas de chuva e de seca na própria Amazônia e no resto do continente, o que afeta o clima do planeta.
Moradores de Muçum resgatam objetos após mortes e destruição de casas e espaços públicos na cidade. Foto: Jeff Botega
Um estudo publicado em 2019 mostrou, por exemplo, que essa devastação impacta diretamente o volume de precipitações na América do Sul. E como na natureza tudo é circular, além desses impactos diretos, a aniquilação do bioma contribui de forma importante e sistemática para o aquecimento do planeta.
Hoje o Brasil ocupa o quarto lugar no vergonhoso ranking dos maiores emissores de gases de efeito estufa do mundo. Enquanto o setor de energia é o principal responsável por colocar as demais nações nos pódio, no Brasil essa contribuição para a crise climática é atribuída principalmente ao uso da terra: fogo e desmatamento precedem a abertura de terras para pastagens e para a atividade agrícola em escala, como a soja, carro-chefe das exportações desse setor, o milho e a cana-de-açúcar.
Já faz algum tempo que a ciência tem se encarregado de mostrar essa rede intrincada, interdependente, complexa e delicada de vidas que se constituem e são constituídas pela Terra. De mostrar, ainda, que a visão cartesiana, calcada nos alicerces da sociedade industrializada, que segue dominando grande parte do pensamento ocidental, tem desestabilizado de forma avassaladora esses ciclos vitais. Nos custa enxergá-la porque entender a crise ambiental implica abrir mão de um sistema conceitual secular fundamentado na ideia do homem como centralidade e da natureza como recurso, que relaciona desenvolvimento com dominação e parte do princípio de que a evolução só ocorre a partir da separação entre homem e natureza. Implica romper com a falsa ideia de que temos controle sobre o nosso entorno e renunciar à premissa de que tudo que é natural existe ali para servir, ameaçar ou satisfazer o homem.
Chegamos a conversar, Moisés e eu, sobre a ciência da crise ambiental e a insuficiência das medidas de reparação dos danos que estão sendo implementadas na região. Mas, depois de desligar o telefone para deixá-lo aproveitar o reencontro com sua família – a esposa e os filhos, de 7 meses e 11 anos, haviam saído da residência no início da enxurrada e conseguido abrigo em um ginásio –, pensei que talvez a forma mais simples de refletir sobre essa tragédia seria abrir as janelas de nossas casas. Naquele mesmo dia em que conversamos, enxergar o horizonte era difícil para nós dois. O céu estava acinzentado em diversas cidades do Rio Grande do Sul: era a primeira vez no ano que a fumaça das queimadas da Amazônia viajava mais de 4 mil quilômetros na direção sul e alcançava o território gaúcho. Seja pelas correntes de vento, pela força das chuvas ou intensidade do calor, há muito mais tempo que a ciência e a própria natureza têm elevado o tom para alertar sobre si, deslocar o olhar do homem de seu próprio umbigo e fazê-lo mirar o real centro do mundo – aquele que carrega o único futuro possível.
Jaqueline Sordi é bióloga, jornalista e ambientalista. Especialista em sustentabilidade pela Universidade da Califórnia (Ucla), tem doutorado em comunicação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Revisão ortográfica (português): Elvira Gago
Tradução para o espanhol: Julieta Sueldo Boedo
Tradução para o inglês: Sarah J. Johnson
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem da página: Érica Saboya
Editoras: Malu Delgado (chefia de reportagem e conteúdo), Viviane Zandonadi (fluxo e estilo) e Talita Bedinelli (coordenação)
Direção: Eliane Brum
Fora da ordem: após ciclone ter devastado o município de Muçum, no início de setembro, um sofá no meio de árvores caídas dá a dimensão da intensidade do vento. Foto: Jeff Botega