Jornalismo do centro do mundo
Coluna liternatura

Arte: Anciã, da artista Indígena Moara Tupinambá

A primeira faísca talvez tenha surgido em maio de 2000, quando publiquei um livro de viagens no qual advertia que os vulcões de três das Ilhas Canárias [arquipélago espanhol no Oceano Atlântico] ainda estavam ativos e que sua erupção colocaria em risco os milhares de pessoas que viviam nos corredores por onde era previsível que a lava se espalhasse, bem como os ocupantes de hotéis e apartamentos no litoral, que poderiam ser atingidos por tsunamis. Uma publicação influente, organizações do setor de hotelaria e turismo do arquipélago e o Cabildo da Grã Canária [administração regional] lançaram uma campanha contra o livro, culminando com a exigência de seu recolhimento. Embora a ação judicial não tenha sido bem-sucedida, a reação agressiva me surpreendeu profundamente, ao mesmo tempo que me alertou sobre até que ponto certos segmentos do setor turístico de meu país – a Espanha – estão dispostos a ir para evitar perder um único cliente que seja: negar as consequências de uma erupção vulcânica.

Continuei a escrever livros de viagem sobre o Nilo, a Nova Zelândia e a costa chinesa, e logo percebi que jornalistas me contatavam sobretudo no verão, pouco antes das férias. Como se os sudaneses, chineses ou maoris só pudessem interessar como cenário de verão. E então outra faísca surgiu: se os outros seres humanos não costumam nos interessar e os vemos como exotismo, como podemos nos interessar por aquele outro de uma espécie alheia, representado pelas árvores, pelos fungos ou pelo restante dos animais?

Ao procurar literatura sobre esses “outros”, descobri que em espanhol havia muito pouca. E quando alguém fazia alusão a livros que colocavam a natureza em primeiro plano, referia-se a esse tipo de escrita como nature writing. Recorrer a uma expressão estrangeira resumia a distância existente entre os falantes do meu idioma e quase toda a natureza não humana [ou mais-que-humana], e, ao imaginar maneiras de encurtar essa distância, surgiu uma palavra: liternatura. Com ene.

O neologismo é autoexplicativo e, desde seu surgimento, tem ajudado a situar e justificar autoras e autores que colocam a natureza em posição central, dando destaque a animais, plantas, minerais, e tratando os cinco elementos como personagens principais. O que vou afirmar agora fará com que eu pareça um pregador, mas a verdade é que A Palavra, esta palavra, liternatura, já foi usada para organizar festivais literários na Espanha (Barcelona e La Siberia, na Estremadura), na Colômbia (Honda) e nos Estados Unidos (Los Angeles); para inaugurar clubes de leitura e criar posições de escritor residente; para destacar uma seção de liternatura nas bibliotecas da minha cidade; para promover encontros que aproximam animais e artistas; e para filmar documentários.

Nem todas essas coisas são literatura, mas é a literatura que dá origem a tudo isso. A emoção criada a partir de um termo que de repente se torna familiar para nós e desperta desejos, instintos, associações latentes, desencadeando de conversas a obras originais que ampliam nosso patrimônio cultural, tornando-o mais diverso.

A questão é por que, durante séculos, perdemos de vista esse espaço. Por que quase ninguém sabe que a primeira coisa que Cristóvão Colombo coletou ao desembarcar em Hispaniola [Ilha de São Domingos, no Caribe] foi um caranguejo [registrado em seu diário de bordo], e poucos se lembram de que Miguel de Cervantes [1547-1616, autor de Dom Quixote de La Mancha], além de imortalizar o cavalo Rocinante e o burro Rucio, escreveu uma história narrada em primeira pessoa por um cachorro, Berganza, no qual chamava a atenção para os enormes maus-tratos aos animais [O Colóquio dos Cachorros faz parte das Novelas Exemplares escritas por Cervantes no fim do século 16 e início do 17].

Apesar dos caranguejos e dos Berganzas, o relato da natureza em espanhol não teve muitos cúmplices, e um dos motivos está na colonização. Durante 300 anos, os conquistadores se preocuparam acima de tudo com a evangelização e a imposição de seu idioma, enquanto enchiam os porões de seus navios com mercadorias americanas destinadas à Espanha. As matanças e a escravidão foram constantes em um longo período de espoliação. Sobre a vida interior dos Indígenas e a formidável Natureza, nada se sabia. O conhecimento do continente era superficial, restrito a uma cartografia mais ou menos militar, aos produtos extraídos e à obediência de seus habitantes.

A realidade era medida em termos de lucros, da sujeição das pessoas e do imaginário ocidental. Se os colonos vissem um huemul [espécie de cervo que habita o sul dos Andes, principalmente o Chile] com um chifre, eles o chamavam de unicórnio; o jaguar, convertiam em tigre; um peixe-boi, em sereia. Mas a partir do momento em que escutaram os povos indígenas mencionarem esses animais com suas próprias palavras, percebendo que algo não se encaixava, decidiram (re)criar uma nomenclatura silvestre, original. Assim, a biodiversidade ingressou em sua linguagem, e é por isso que, hoje, em espanhol, uma capivara pode ser chamada também de chigüiro, pataseca, bocaeburro ou culopando.

De qualquer modo, o tempo passou. Três séculos. A Revolução Industrial afiou as garras do extrativismo. E enquanto os narradores estadunidenses e canadenses contemplavam a natureza como dominável, os latino-americanos determinavam que não era possível governar Florestas, Planícies, Rios e cadeias de Montanhas.

Enquanto os primeiros desenvolveram técnicas modernas e sistemáticas de controle e exploração, que incluíam a eliminação de animais e plantas – exceto os necessários para a obtenção de lucro – e, ao mesmo tempo, a proteção de grandes áreas de natureza selvagem, os segundos ainda se relacionavam com a paisagem de um modo tradicional.

Quanto aos relatos, escrevê-los requer um mínimo de ordem. E se os metódicos descendentes de anglo-saxões, principalmente os que usavam a língua inglesa, voltaram sua atenção a relatar a natureza selvagem, dando origem ao gênero conhecido como nature writing, os falantes de espanhol negligenciaram as histórias sobre o que consideravam ser espaços de pura anarquia, condenando sua própria natureza à invisibilidade narrativa. Como resultado, muitos animais latino-americanos chegaram à literatura mundial mais tarde do que a maioria dos animais. Por esse motivo, muitos dos primeiros livros de referência sobre a flora e a fauna do continente foram escritos por pessoas educadas em outros idiomas que não o espanhol, de Alexander von Humboldt (1769-1859) a Charles Darwin (1809-1882), e com o correr das décadas outros autores, principalmente anglo-saxões, assumiram essa tarefa [de escrever sobre a Natureza].

Mas.

Além da tinta e do papel, os povos indígenas mantiveram vivas as histórias autóctones do rural e do selvagem. A maioria deles tampouco falava espanhol, embora, ao longo dos séculos e com a influência colonial, alguns tenham adaptado seus relatos para esse idioma. Até agora, o relato natural da América Latina esteve principalmente na boca dos xamãs, muitas vezes analfabetos – das letras dos colonizadores. Hoje, estão começando a surgir jovens dispostos a preservar a tradição, a tomar yagé (ayahuasca) para se comunicar espiritualmente com águias ou cobras, enquanto estudam biologia ou filologia hispânica com o objetivo de contar, às vezes por escrito, a história da planta ombú [Phytolacca dioica, não confundir com o umbuzeiro, muito conhecido no Brasil] ou do queixada de uma maneira que ninguém mais poderia fazer.

O jornalista e editor peruano Joseph Zárate, neto de uma Indígena Kukama Kukamiria, é um expoente dessa nova onda literária. Zárate opta pelo jornalismo para denunciar os abusos cometidos por empresas de desmatamento, mineradoras, petroleiras… Ao mesmo tempo, reivindica a coragem das pessoas que defendem os espaços naturais e para isso colocam em risco a própria vida: foi o caso de Edwin Chota (1962-2014) – ativista ambiental e representante do povo Ashaninka –, assassinado junto com três companheiros. Zárate também assume grandes riscos ao narrar, e isso nos permite entender uma das razões pelas quais durante anos a liternatura não se enraizou na América Latina: o medo. Se na Espanha a indústria do turismo pode aspirar a censurar um autor, na América Latina algumas empresas extrativistas aliadas a certos políticos e policiais podem assassiná-lo.

Além disso, durante muitos anos, o relato tecnológico tirou a natureza do foco literário, relegando-a às histórias infantis ou à poesia bucólica, como se Moby Dick (do estadunidense Herman Melville) – obra inspirada, aliás, em uma baleia chilena –, Sudeste (do argentino Haroldo Conti) ou A Voragem (do colombiano José Eustasio Rivera) não existissem. O mais curioso foi observar a maneira pela qual escritores e intelectuais renunciaram a narrar seus próprios ecossistemas, curvando-se às modas lucrativas.

Isso não é incomum. Afinal de contas, os escritores e intelectuais de um lugar compartilham de interesses, sofrimentos e desejos com o restante dos cidadãos e se há algo que ficou claro para muitos deles é que, na Espanha e na América Latina, escrever sobre viagens e natureza não garantiria seu futuro como seres vivos.

Um problema da deserção intelectual é o terreno baldio que ela deixa na base da educação. Uma ornitóloga diz que em seu país natal, o Uruguai (nome de origem Indígena que costuma ser traduzido como “Rio dos Pássaros Pintados”), quase não há ornitólogos. Colombianos afirmam que emigraram porque a arqueologia como carreira não era viável em seu país. Argentinos lamentam que, em um pampa repleto de ossos de dinossauros, não exista a carreira de técnico em paleontologia. Quando perguntei a veteranos guardas-florestais, botânicos, tratadores de animais em zoológicos ou na natureza, sobre leituras não científicas envolvendo plantas, árvores, água ou animais, a resposta usual era que os interlocutores arqueassem as sobrancelhas, franzissem os lábios e respondessem “Não sei”.

Nos últimos anos, várias pessoas do continente me disseram que, em geral, só se escreve sobre a natureza para denunciar a poluição dos rios, a grande exploração madeireira, os pampas secos devido às mudanças climáticas… Conclusão: a natureza latino-americana está em uma posição defensiva, quando na realidade é ela que impera, quando a biodiversidade de países como Brasil, Venezuela, Chile ou Colômbia é impressionante.

No entanto.

Os inexoráveis alertas ambientais provocaram o surgimento de visões que, sem esquecer a denúncia, propõem perspectivas mais otimistas. Dos axolotles (ou axolotes) e escorpiões de um Andrés Cota, que lembra Gerald Durrell, à colombiana María Ospina, que recebeu o prêmio Sor Juana Inés de la Cruz por um romance protagonizado por tangaras (saís ou sanhaços) e porcos-espinhos, a liternatura está se expandindo e iluminando. De fato, a Colômbia surge como uma invejável fábrica de autores, com Juan Cárdenas escrevendo sobre um pintor de paisagens, Santiago Wills dedicando-se à busca de jaguares, ou Sara Jaramillo Klinkert, que, entre outros elementos, aborda a água com cuidado. E isso invoca o ensaio La Isla de las Tribus Perdidas, no qual o mexicano Ignacio Padilla reflete sobre a ausência do mar na literatura latino-americana. Quanto à Espanha, é surpreendente que uma península com dois grandes arquipélagos não tenha quase nenhuma literatura recente que dê importância ao mar. Tampouco à dehesa [uma paisagem e ecossistema especial de pasto e agrofloresta], à meseta [formação geológica que ocupa quase metade da Espanha com diferentes características, de solos rochosos até planícies que formam zonas agrícolas, e também contém uma parte de uma das mais importantes reservas da bioesfera da Europa] ou… aos vulcões.

A consciência de que uma narrativa “natural” em espanhol é necessária surgiu muito recentemente e é muito frágil. Em 1977, a Venezuela anunciou o primeiro ministro do Meio Ambiente da América Latina. Em 1999, foi criada a rede de Fundos Ambientais para essa região e o Caribe. Em um workshop de jornalistas ambientais da América Central em Santo Domingo, na primavera de 2023, quase todos os participantes estavam exilados de seus países ou vivendo sob ameaça. No ano anterior, o ministro do Meio Ambiente da República Dominicana havia sido executado com três tiros em seu escritório. Vários países latino-americanos estão entre os mais perigosos do mundo para os ambientalistas.

Portanto, há uma infinidade de temas cruciais que ainda não foram abordados, embora a conscientização esteja gerando uma primeira onda de cientistas humanistas e escritores capazes de narrar todos os tipos de natureza usando o vocabulário correto. Da poesia de Isabel Zapata às partículas subatômicas do chileno Benjamín Labatut ou aos oceanos contados pelo biólogo espanhol radicado nos Estados Unidos Enric Sala, às experiências na selva e nos Andes das equatorianas Natalia García Freire e Mónica Ojeda ou as experiências rurais da argentina Mariana Travacio, a liternatura está avançando ao filtrar “A Grande Conversação” entre os seres humanos e o restante dos seres vivos que Thomas Berry (1914-2009) propunha como condição indispensável para a sobrevivência de nossa espécie [no livro The Dream of the Earth].

É verdade que, muitos séculos antes de Berry – filósofo e historiador estadunidense –, os povos indígenas americanos já conversavam com araras, antas ou crocodilos, integrando uma vanguarda biodiversa da qual pouco ou nada se sabia fora de suas comunidades. Aquelas pessoas cruciais na reformulação de nossa relação com a natureza eram tão invisíveis quanto os animais, muitas vezes grandes e até gigantescos, com os quais “falavam”. Por isso, a nova onda de narrativas pretende resgatar essas conversas, acrescentando algumas informações atuais e empolgantes que nos permitem contemplar melhor nosso lugar atual no mundo.

Por exemplo.

Depois de ler um livro com um crocodilo, imaginei-me pela primeira vez sendo devorado e pensei na cadeia alimentar. Graças às estatísticas, agora sei que meu nível na cadeia é 2,2. O mesmo nível das anchovas e dos porcos. Muito longe dos 5,5 da orca. Mas suponho que sempre soube e aceitei que sou altamente comestível, e deduzo que o fato de ter vivido internalizando uma certeza como essa explica a razão de muitas das simpatias, atitudes e compromissos que alguns de nós vamos adquirindo ao longo da vida.

A consciência de sermos presas nos permite manter os mecanismos e as ferramentas de sobrevivência bem lubrificados. No caso dos escritores, as palavras talvez sejam a ferramenta mais útil e decisiva. Ao escrever ecoanimal, supermaçã, futuralgia, verdolatria, liternatura, é como se o escritor afiasse suas garras, chifres, bicos, presas. O autor revela que está pronto para defender sua vida e adverte que, nos últimos anos, aprendeu uma coisa e outra. Por exemplo, a propor palavras que lhe permitam comunicar melhor suas ideias.

Assim, liternatura é uma palavra nova para identificar uma literatura impressionante, mas até agora muito invisível no âmbito do idioma espanhol. Uma palavra para mudar a história de 595 milhões de pessoas, para conter o medo, para expandir as naturezas. Onze letras para empreender uma revolução inesperada – que não vem das telas.

Gabi Martínez escreveu sobre desertos, rios, mares, montanhas, deltas e todos os tipos de seres vivos. Viveu durante um ano com pastores em uma dehesa (ecossistema tradicional de agrofloresta e pastagem em uma região rural em La Siberia, na Espanha) e outro na última casa antes do mar na Ilha de Buda, na Catalunha, a primeira a ser engolida pelas águas nos anos seguintes. Depois dessas experiências, Martínez escreveu Um Cambio de Verdad e Delta. Sua obra inclui 16 livros e foi traduzida em dez países. O autor impulsionou o projeto Liternatura, é membro fundador das Asociaciones Caravana Negra e Lagarta Fernández, de la Fundación Ecología Urbana y Territorial, e codiretor do projeto Animales Invisibles. Em SUMAÚMA escreve para o espaço LiterNatura.


 

Texto: Gabi Martínez
Arte: Yaka Huni Kuin (Mulher-Jiboia) e Moara Tupinambá (Anciã). Curadoria: Cacao Sousa
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o português: Paulo Migliacci. Colaborou: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Charlotte Coombe
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Edição: Eliane Brum e Viviane Zandonadi (fluxo de edição e estilo)
Editora-chefa: Talita Bedinelli
Diretora de redação: Eliane Brum

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