Jornalismo do centro do mundo

Maial é pintada pela mãe, Irekran Kaiapó, antes de um evento em Belém. Foto: Nailana Thiely

Maial Paiakan Kaiapó está prestes a viajar a Ourilândia do Norte, cidade do sul do Pará, onde grande parte dos pouco mais de 33 mil habitantes vivem de atividades ligadas à agropecuária, nem sempre dentro da lei. É 18 de agosto e ela quer visitar as aldeias Kayapó da região. Está em campanha eleitoral desde que decidiu aceitar o chamado do seu povo para ser uma das mulheres indígenas candidatas a uma vaga de deputada federal em 2022 pelo estado do Pará. Sua irmã, Tania Kaiapó, acompanha Maial nesta jornada eleitoral. Numa parada em Xinguara, a 147 km do de Ourilândia, uma cena sintetiza o desafio das candidaturas indígenas no país em que o agronegócio, com frequência predatório, ganhou prioridade absoluta sob o presidente Jair Bolsonaro.

Tania entra numa pequena farmácia para beber água, enquanto Maial fica no carro, pois não anda se sentindo muito bem. Um homem branco, alto, com bota e cinto de fivela à mostra olha com insistência em sua direção. Ele olhou uma, duas, três vezes, como se estivesse incomodado. De repente, outra mulher branca, de cabelos claros, entra na mesma farmácia e repete o feito. É uma reação comum por ali, atesta Tania. “Em Xinguara as pessoas são muito hostis. Na verdade, em diversos municípios desta região do sul do Pará é assim que tratam a nós, do povo Kayapó”, diz ela. Como Maial, ela tem estatura mediana, olhos pretos pequenos e cabelos lisos. As feições indígenas são evidentes. Mais da metade da população de Xinguara votou em Bolsonaro nas últimas eleições.

A campanha oficial de Maial como candidata da Rede Sustentabilidade começou no dia 16, em Belém, capital do Pará. Eu a encontrei pela primeira vez em 17 de agosto, na cidade de Redenção, a 905 km da capital paraense. Pelas próximas semanas a acompanhei para testemunhar a rotina de uma candidatura indígena na região amazônica, a mais vulnerável na disputa pela conservação do meio ambiente no Brasil de hoje. O foco de Maial é bem claro. “Chegamos em um ponto em que é urgente colocar as pessoas certas no poder, e quando eu falo certas, falo de alguém que conhece a realidade das nossas aldeias, que respeita todas as vidas da floresta”, explica a Kayapó de 34 anos.

Sua outra irmã, a cacica O-É Paiakan, seria, inicialmente, a candidata Kayapó nestas eleições. Mas ela engravidou, e a comunidade chegou a um consenso de que seria melhor que Maial assumisse o desafio. Uma ou outra representaria muito bem os Kayapó, mas prevaleceu a ideia de preservar a saúde de O-É.

Nascida em Belém, Maial cresceu na aldeia Aukre, onde vivenciou a realidade dos indígenas. Também aprendeu a conviver nos espaços dos não indígenas, quando foi estudar em Redenção, a 280 km da sua aldeia. A cidade cresceu em meio à grilagem e à usurpação do território indígena. A economia local é voltada para a pecuária de corte e fornece gado para diversos abatedouros, facilmente avistados às margens da rodovia PA-287, que corta o município. Além do gado, a monocultura da soja também passou a ser cultivada ali.

Ser uma candidata indígena em campanha por cidades onde grileiros, madeireiros e fazendeiros dominam a economia é uma ousadia muito maior do que querer entrar numa farmácia como os não indígenas. Maial aceitou o desafio diante dos riscos vividos pelo seu povo. O Pará é o estado que mais desmata entre os nove que compõem a região amazônica, segundo dados do Sistema de Alerta do Desmatamento (SAD), do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon). Foram derrubados 3.858 quilômetros quadrados de floresta nos últimos 12 meses (de agosto de 2021 a julho de 2022) ou 36% do total desmatado na Amazônia.

Maial está estreando na política como candidata, mas o assunto está presente em sua vida desde que nasceu. “Essa trajetória [se] iniciou com o meu pai. Ele sempre incentivou a gente a ir para a cidade estudar, porque dizia: ‘No futuro vocês vão ajudar o nosso povo e não só os Kayapó, mas todos os povos indígenas’”, lembra ela. Maial é filha de Paulinho Paiakan, liderança histórica do seu povo, que lutou pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição de 1988. Ele morreu em 2020 de covid-19, como muitos indígenas abandonados pelo governo Bolsonaro, que dificultou o acesso à vacina e distribuiu cloroquina em aldeias, entre outras atrocidades cometidas contra a população originária.

Maial é também sobrinha neta do cacique Raoni Metuktire, ícone mundial da luta indígena. E sobrinha de Tuire, um símbolo do protagonismo feminino entre os povos indígenas: sua imagem, encostando o facão no rosto de um diretor da Eletronorte, em 1989, em Altamira, rodou o mundo e ajudou a retardar a desastrosa usina de Kararaô, no Rio Xingu, que depois seria renomeada como Belo Monte.

Tuire Kayapó coloca um facão no rosto do diretor da Eletronorte, José Antonio Muniz Lopes, em protesto pela construção da usina de Karakaô, depois renomeada de Belo Monte. Foto: Protásio Nene (21/02/89)

Fazer-se resistência é um legado em sua família. Ela e suas irmãs, Tania e a cacica O-É Paiakan, cresceram ouvindo do pai sobre a importância de lutar pelos direitos indígenas. Foram estimuladas a buscar conhecimento e acompanhar todas as leis feitas em Brasília que pudessem prejudicar seu povo. Projetos de leis, decretos, portarias. Para entrar nessa luta, Maial foi a primeira dos Kayapó a se tornar bacharel em direito.

Trabalhou como assessora da presidência da Funai em análises e acompanhamentos de processos de demarcação e proteção das terras indígenas em 2016. Depois, como assessora jurídica na Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), entre 2017 e 2019. Na sequência, foi assessora durante o mandato da deputada Joenia Wapichana (Rede-RR), a primeira mulher indígena no Congresso Nacional, eleita em 2018. Joenia abriu passagem para que outras mulheres indígenas, como Maial, se encorajassem a fortalecer a resistência política.

Nestas eleições, dos 186 candidatos autodeclarados indígenas, 84 são mulheres, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Em 2018, eram 130. O número é pequeno quando comparado ao dos não indígenas, que totalizam 28.931 candidaturas. Na jovem e conturbada história da democracia brasileira, porém, é um passo importante.

Do total das candidaturas, 66% são de homens, e apenas 34%, de mulheres. As brasileiras garantiram o direito ao voto no Brasil somente em 1932. Mas ainda há um abismo para a inclusão das mulheres na política de fato. Um exemplo dessa luta constante é que somente em 2016 elas conquistaram um banheiro feminino no plenário. Até dezembro de 2015, caso alguma parlamentar precisasse usar o banheiro, ela tinha que se deslocar até um restaurante anexo.

A jovem Kayapó vem de um povo onde as mulheres são fortes e têm voz ativa nas decisões políticas que dizem respeito a sua comunidade. Tornou-se uma contradição para ela viver num país em que políticos brancos definem o seu destino sem espaço para contestação. Já se tornou questão de vida ou morte. Só em 2021 foram 176 execuções, seis a menos do que em 2020, como mostra levantamento do Conselho Indigenista Missionário (Cimi). “As balas que nos atingem vem autorizadas pelo Palácio do Planalto e pelo Congresso”, diz Sonia Guajajara, também candidata a deputada federal pelo PSOL em São Paulo. O assassinato de indígenas cresceu sob a ação de garimpeiros e madeireiros, sob a indiferença do governo Bolsonaro.

Mas sem os povos indígenas não há vida neste planeta, alerta Maial. “Somos muitos, mas enfrentamos os mesmos problemas: garimpo, grilagem, exploração ilegal de madeira, a necessidade de demarcação das nossas terras”, diz ela. “Acredito que, agora, mais do que nunca, entendemos que as coisas só vão mudar quando mudarmos também quem faz as leis em Brasília. Só vai mudar quando aldearmos a política”, completa. “Aldear”, aqui, é levar o conceito do coletivo para o Congresso Nacional e fazer o contraponto aos projetos da bancada ruralista — formada por mais de 200 deputados — que visa o lucro imediato para uma minoria de grileiros e fazendeiros em detrimento da floresta e das vidas indígenas.

A candidata Kayapó distribui material de campanha em Santarém. Foto: Kevin Gonzalez

O Pará é o segundo maior estado brasileiro em extensão territorial, perdendo somente para o Amazonas. São 144 municípios com realidades distintas. Belém, por exemplo, é uma metrópole de mais de 1,5 milhão de habitantes. Mas no sul do Estado, vários municípios visitados por Maial têm um ponto em comum: são cidades que vivem das terras de grileiros (ladrões de terras públicas) e fazendeiros. A população se divide entre o trabalho na agropecuária e nos mercados locais, em sua maioria empresas que abastecem esses empreendimentos rurais, como lojas de insumos agrícolas, venda de ração animal e abatedouros.

A irmã Tania atua como coordenadora da campanha. Ainda em Redenção, antes de tomar o caminho para Ourilândia, um dos filhos de Tania, Kauã Paiakan, ajudava a distribuir material de divulgação da tia. Ele carregava nos braços alguns poucos adesivos com o rosto, o nome e o número: Maial Kayapó, deputada federal, 1818. “São muitos desafios e a gente está se desdobrando em mil para fazer as coisas acontecerem. Imagino que campanhas eleitorais sejam um desafio, mas para uma mulher indígena o enfrentamento é ainda maior”, diz Tania.

Tudo para os indígenas brasileiros tem sido desafiador sob Bolsonaro, que asfixia as verbas dedicadas a eles. Na antiga sede da Funai de Redenção, por exemplo, o descaso é visível. O espaço, apesar de ser um ponto de apoio para indígenas que vêm das aldeias, tem sinais evidentes de abandono. O lugar serve como casa de passagem para famílias que levam seus filhos para estudar na cidade. Nas comunidades, só há escolas até o ensino fundamental. Quem quer que os filhos sigam com os estudos, é obrigado a seguir para Redenção.

O diálogo com os Kayapó foi marcado para às 15h e o termômetro marcava 36 graus com sensação térmica de 40. Redenção é uma cidade que já tem alguma estrutura de asfalto e saneamento básico na parte mais central. Mas no entorno da sede da antiga Funai, as ruas são praticamente de chão de terra batida, e os carros, caminhonetes e motos levantam bastante poeira de terra vermelha, o que faz com que as ruas e casas da cidade tenham cor de barro.

Ela é recebida e, em poucos minutos, todos se acomodam em cadeiras de plástico em forma de roda. Anda devagar e está abatida. Pergunto se ela está bem, e ela responde: “Estou pálida, né?”. A candidata começou o período oficial de campanha com a saúde fragilizada. Dores, náuseas, mal-estar. Ainda não sabe o que tem. Anda com uma garrafa de água e outra com um preparo cor de âmbar, uma mistura de ervas feita por um parente para ajudá-la a recuperar a saúde.

Diferente dos não indígenas, que fazem campanha eleitoral em microfones e carros de som, vejo Maial escutar a todos que seguem para o centro da roda e falam dirigindo-se a ela. Nas semanas seguintes em que a acompanho, essa é a característica que mais chama a atenção: ela escuta mais do que fala. Só se pronuncia quando os demais silenciam.

Maial escuta a tia Tuire Kayapó falar em Ourilândia do Norte. Foto: Catarina Barbosa

De Redenção até Ourilândia, onde vai visitar as aldeias Kayapó, são mais de 258 km. O trajeto ultrapassa quatro horas e meia de carro e contém trechos difíceis, asfalto com buracos que parecem crateras e pedaços de estrada de terra batida. Há momentos, inclusive, que precisamos encostar nas laterais da rodovia, que não têm acostamento. A poeira levantada pelos veículos é tão alta que cobre a caminhonete alugada. Isso nos impede de enxergar qualquer coisa à nossa frente. As estradas, na Amazônia, costumam carregar histórias de extermínio de povos indígenas e estão sempre sendo engolidas pela floresta. Por segurança, vamos devagar. A viagem inclui paradas em Pau D’arco, Água Azul do Norte e Xinguara. Foi nesta última que Tania Paiakan foi alvo de olhares hostis na farmácia.

Durante a viagem, Maial segue decaída, apesar de sempre responder que “está tudo bem”. Depois, a irmã conta, em reservado, que ela passou mal durante a madrugada, com febre, dor de cabeça e no corpo. Dali a alguns dias, vai descobrir que o mal-estar é malária. Mas, antes de conhecer o diagnóstico, a candidata segue fiel à agenda para não frustrar seu povo. Tem pouco tempo para se fazer conhecida e poucos recursos.

A equipe de campanha da Maial ficou restrita a três pessoas: ela mesma, a irmã Tania e Teresa Harari, mestre em administração pública e governo pela Fundação Getúlio Vargas, que também atua como coordenadora. Para economizar, Tania e Teresa se alternam nas viagens. “Para cada município onde ela se desloca, construímos uma rede [local] de apoiadores que colaboram com a candidatura dela”, explica Teresa, que vive em uma vila em Alter do Chão, no Pará. A campanha de Maial conseguiu levantar 325.575 reais – 200 mil reais do partido e o restante de doações. Grande parte desse valor financia as viagens pelo Estado.

Finalmente, chegamos a Ourilândia, onde ela também encontrará sua família. É 18 de agosto, e a primeira parada é na Chácara dos Padres, local que recebe um grande encontro de indígenas. São integrantes da Associação Floresta Protegida, uma organização que representa aproximadamente 3 mil indígenas de 31 aldeias das Terras Indígenas Kayapó, Mekragnoti e Las Casas. Quando Maial chega, é recebida pela mãe, Irekran Kayapó. O local tem mais de 250 lideranças de diversas aldeias. Depois de abraçar a mãe, a tia Tuire cai no choro. Ao contrário do senso comum para os não indígenas, o choro é motivo de alegria. Ele marca despedida, felicidade, saudade, e nesse caso, um reencontro. Elas se abraçam. “Ao chegar em um local é questão de respeito cumprimentar todos os presentes. Se tiver 100 pessoas, vou cumprimentar as 100. É a nossa política, dentro da tradição, da nossa cultura”, explica ela.

Tuire, assim como o pai de Maial, o cacique Paulinho Paiakan, é um ícone da luta dos povos indígenas. Carrega consigo o respeito de todas as lutas da qual participou, incluindo a resistência à construção de Belo Monte.

Sua sobrinha candidata segue abraçando e apertando a mão dos parentes um a um. Todos estão pintados e, entre as sobrancelhas, se destaca o número 1818 de sua candidatura. A pintura corporal faz parte do cotidiano do povo Kayapó e é realizada pelas mulheres, podendo ser feita com jenipapo ou com urucum.

A com jenipapo fornece uma espécie de proteção espiritual. “Pintamos o corpo quando estamos bem, saudáveis, para proteger o nosso corpo e o nosso espírito. A pintura com urucum nos protege de ameaças externas”, explica Tania. Nesta primeira etapa da campanha, Maial passa os dias sem nenhuma pintura. “Pintar o corpo agora pode impedir que ele se cure. E Maial precisa se curar”, esclarece a irmã. A passagem pela Chácara dos Padres é rápida, porque a esperam na aldeia Modjãn.

São cerca de 30 minutos de carro até a aldeia. Quando chegamos, o dia estava virando noite. Todos aguardavam na Casa dos Guerreiros, espaço localizado no centro da aldeia e de grande importância para a vida política e também para os rituais dos Kayapó. É um lugar ocupado por homens, mas Maial entra lá sem nenhum estranhamento. O pai, o cacique Paulinho Paiakan, fez com que ela e as irmãs transitassem no local desde pequenas.

Com a chegada de Maial, as mulheres caem no choro e, desta vez, Maial também. Dispostos em forma de círculo, ela senta depois de cumprimentar a todas e todos. O primeiro a discursar é o cacique Beptori Kayapó. “Nós estamos com você do início até o final. É muito bom ter você aqui, vai dar tudo certo”, diz ele, na língua Kayapó.

Outras lideranças relembram a luta e as conquistas de Paulinho Paiakan pelos povos indígenas. “Continue a luta do seu pai, Maial. Ele foi um exemplo para o povo Kayapó e agora está nas suas mãos”, diz Panhkadjara Kayapó. A esperança toma conta do espaço. “Depois de anos, é a primeira vez que me sinto representado”, diz Beprotire Kayapó, um homem de estatura mediana, olhos pretos, cabelos lisos e curtos. “Eu nunca votei nos brancos e hoje aparece você. Você é a esperança para o povo indígena falando a voz dos Kayapó. Eu não vou abandonar você, em qualquer situação, vamos te ajudar”, diz Beprotire.

As falas seguintes marcam o desejo dos indígenas de atuar diretamente na formulação das políticas públicas que lhes dizem respeito. Depois de escutar seu povo, Maial cita os artigos 231 e 232 da Constituição brasileira, que reconhecem os direitos dos povos, a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. “Escolhi começar essa caminhada junto a vocês, meu povo, minha família. Meu pai lutou, mas ainda temos muito a fazer”, diz ela. Na despedida, as mulheres Kayapó da aldeia, de improviso, criam uma música para Maial que diz: “A nossa candidata está aqui, o nome dela é Maial e ela está aqui com a gente”.

Ao sairmos da aldeia Modjãn, vamos a Tucumã, perto dali, onde passamos a noite. O município faz fronteira com Ourilândia do Norte. Maial segue debilitada, mas, ainda assim, no dia seguinte, ela visita outra aldeia chamada Turedjãn. Mulheres e parentes dialogam, aconselham e declaram apoio e esperança à candidatura da irmã Kayapó. A emoção dos encontros mascara os sintomas de Maial. Mas, quando a noite chega, a febre volta e as dores no corpo também. A ideia era seguir logo cedo para a aldeia Kokraimoro, localizada em São Félix do Xingu. Mas ela se rende aos sinais do corpo e decide descansar antes de partir. Acaba desistindo. “Optamos por retornar para Redenção e procurar um médico para saber porque a Maial não está melhorando”, disse Tania por mensagem de WhatsApp. Não vejo mais Maial.

Ainda em Tucumã, as irmãs procuram um pajé do seu povo. Os pajés são vistos como médicos que curam, assim como os médicos não indígenas. Coube ao Krwyt Kayapó, um homem de 1,70 metro e cabelos brancos, a missão de cuidar de Maial. Tem as bochechas, pernas e braços pintados de jenipapo. Trazia ervas e raízes numa bolsa, com as quais cuidou da jovem candidata. “Eu sempre penso muito em vocês e no pai de vocês. Nunca vou esquecer que foi ele quem ajudou a construir a nossa aldeia”, diz ele. Maial iniciou o tratamento com o pajé, mas no dia seguinte retornou a Redenção, em busca de um médico não indígena.

Pagaram uma consulta particular para que Maial tivesse um atendimento rápido. Ao analisar os exames de sangue, o médico disse que o caso era grave e pediu mais exames, incluindo o de malária e leishmaniose. “Ela está muito anêmica e com o baço aumentado”, relatou a irmã. Ao realizar o teste de malária no dia seguinte, porque o de leishmaniose não estava disponível, Maial testou positivo para a doença.

A malária é transmitida por meio da picada de fêmeas do mosquito Anopheles infectadas pelo protozoário plasmodium, mas também tem relação direta com a destruição da floresta. Maial acredita que foi contaminada, ainda na pré-campanha, em visita às aldeias de Novo Progresso, cidade que protagonizou o Dia do Fogo, em 10 de agosto de 2019, quando grileiros e madeireiros organizaram uma onda de queimadas que alcançou 2.366 focos na floresta “Diversos parentes estavam com a doença”, afirma. Com o diagnóstico em mãos, precisa de uma pausa de sete dias na campanha, o tempo para que a medicação contra a malária surta efeito.

A semana de recuperação é decisiva para seguir com uma agenda intensa pela frente. Um dos pontos altos é um encontro no dia 2 de setembro em Belém, para uma agenda com o candidato petista à Presidência da República, Luiz Inácio Lula da Silva. Maial aceita o diagnóstico e cumpre as ordens médicas. Em uma semana, já está inteira outra vez.

Ela chega a Belém após um trajeto de seis horas de ônibus de Redenção até Marabá, onde pegou o avião que a levaria até a capital. O local de encontro é um hotel onde diversos candidatos estão aglomerados para fazer a foto de campanha com Lula. Maial chega de calça vermelha, blusa verde, grandes pulseiras de miçanga e um longo colar, ambos vermelhos. Ela tem o rosto e os braços pintados com jenipapo.

Fica horas no aguardo da foto oficial. Na sequência, segue para o comício do candidato petista. No trajeto, é reconhecida por estudantes e professores que anunciam o apoio a sua candidatura. O local reúne também indígenas, quilombolas, ribeirinhos e militantes de movimentos sociais engajados em iniciativas que preservem a biodiversidade e os povos que vivem na floresta.

Lula garante que vai colocar um indígena para presidir a Funai. “A boiada não vai mais passar”, assegura o ex-presidente, que lidera as pesquisas. A boiada foi a expressão utilizada pelo ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles numa reunião ministerial durante a pandemia de covid. Com a imprensa toda voltada para os efeitos da covid-19, ele sugeriu que era hora de “passar a boiada” na Amazônia.

Maial Kaiapó em Belém. Foto: Nailana Thiely

Em forma de círculo, os Kayapó decidem que, no ato com Lula, será Tuire, a tia icônica de Maial, que os representará. “Minha tia tem uma história, uma luta e decidimos coletivamente que ela subirá ao palco e eu ficarei junto com o nosso povo”, explica Maial. Presenciar Tuire de mãos dadas com o candidato do PT simboliza a compreensão dos Kayapó e de todos os outros povos da floresta da importância de se unirem, neste momento, com um objetivo único: mesmo que Belo Monte, a emblemática usina hidrelétrica rechaçada pelos Kayapó, tenha sido erguida com aval de governos do PT, é imperativo derrotar o fascismo. “Bolsonaro é o presidente que disse que não ia demarcar terras indígenas e não demarcou. Depois que ele assumiu, os conflitos nas nossas terras aumentaram, o atendimento de saúde piorou, os garimpeiros avançaram, assim como a exploração ilegal de madeira”, disse Maial. Mas a luta é contínua, independente de quem for o vencedor. “Vamos cobrar políticas públicas que respeitem as nossas comunidades, o nosso povo”, diz a candidata a deputada federal.

A percepção do papel de Maial vai além do povo Kayapó, como percebo em Oriximiná, oeste do Pará, para onde seguimos em 5 de setembro, em uma viagem de avião e de voadeira que dura seis horas. Há um encontro marcado com o cacique Juventino Pesiana, do povo Kaxuyana. Juventino celebra a candidatura da Kayapó. “A política atual não está fácil para nós, os nossos direitos estão sendo violados e o nosso povo, massacrado. A Joenia Wapichana fez muito sozinha, mas, se tivermos mais apoio, podemos fazer muito mais”, diz o cacique.
Com o tempo apertado, Maial não consegue se deslocar até as aldeias e comunidades quilombolas da cidade. Mesmo assim, a liderança Wirika Wai Wai garante que fará campanha por ela. “Nós vamos levar o seu nome aos nossos parentes. Vamos falar da importância de votar em uma mulher indígena. Tenha certeza: estamos com você, mas não nos esqueça”, pede Wirika Wai Wai. “Não vou esquecer”, garante Maial.

A agenda segue intensa e, no dia seguinte, Maial participa da 28ª Marcha dos Excluídos, uma mobilização que ocorre em contraponto ao 7 de setembro, que marca a “independência” do Brasil. O evento foi realizado na Praça da Matriz, em Santarém, organizado pelas pastorais sociais que atuam na região. Cerca de 100 pessoas, espalhadas na praça, participaram do ato. Enquanto o evento não começava, Maial dialogava com apoiadores e jornalistas. Na rua lateral à praça, uma carreata de apoiadores do presidente Jair Bolsonaro (PL) fazia muito barulho e provocações com suas camisas e bandeiras verde e amarela. Maial não se abala. Apesar de ter um menor número de participantes, seu evento se mobilizou de tal forma que preencheu todo o espaço da praça. Uma passagem simbólica de como é preciso se multiplicar quando se está em eterna disputa. No dia seguinte, pronta para mais uma agenda de campanha, que só termina em 30 de setembro, a candidata Kayapó vê uma borboleta azul brilhante e preta. “É um símbolo de sorte”, sorri. Eu volto para Belém. E ela segue sua campanha para aldear a política no Brasil. Uma campanha que não acaba nesta eleição.

Edição: Carla Jimenez


 

O efeito Joenia

As falas e as ações da deputada federal indígena, Joenia Wapichana, da Rede Sustentabilidade de Roraima, ecoam para além das fronteiras do Estado que a elegeu. Eleita em 2018, ela tornou-se referência em Brasília para os quase 900 mil indígenas de diferentes etnias em todo o território brasileiro. É ela a voz de todos os povos na Câmara dos Deputados quando seus direitos e suas vidas são comprometidos. Dos 74 requerimentos apresentados na Câmara durante seu mandato, a quase totalidade se refere direta ou indiretamente às populações originárias. Sua experiência foi decisiva para inspirar mais mulheres indígenas a se candidatarem este ano. Joenia segue na linha de frente, agora pela reeleição.

Com adereços indígenas e vestindo um paletó durante as sessões no Congresso, a deputada foi decisiva para marcar posição durante o Governo Bolsonaro. Na Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid, por exemplo, como coordenadora da Frente Parlamentar Mista em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, apresentou ao Congresso um dossiê apontando como o governo Bolsonaro praticou o crime de genocídio contra seu povo durante a pandemia.

O documento reuniu uma série de ações do Executivo que expôs populações tradicionais a riscos de contágio pelo novo coronavírus e também situações de omissões deliberadas do governo no enfrentamento da pandemia em 19 de outubro de 2020. O atraso das vacinas, o sucateamento de postos de saúde e o não reconhecimento dos indígenas de fora das zonas rurais como prioritários para a vacinação foram algumas das ações que prejudicaram essas populações.

Em junho deste ano, após a execução do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, Joenia foi uma das vozes mais incisivas nas solicitações de audiências públicas para cobrar explicações sobre o crime ocorrido no Vale do Javari.

Na Câmara, Joenia se movimenta em alianças com outros partidos de oposição. E busca pontos em comum com a luta das mulheres entre seus pares em partidos governistas. O objetivo é atuar por políticas públicas que contemplem os indígenas e façam valer os direitos garantidos pela Constituição. “Esse papel das mulheres e, sobretudo, das mulheres indígenas é importante porque elas são historicamente excluídas desses espaços de poder”, defende Teresa Harari, mestre em Administração Pública e Governo pela Fundação Getúlio Vargas e autora da tese de dissertação “Políticas para adiar o fim do mundo”, documento que contém uma análise qualitativa do mandato da deputada. Para Harari, há outros desdobramentos que podem ser extraídos da candidatura de Joenia. “Há significados mais amplos do que o próprio mandato, como o incentivo a novas candidaturas indígenas e também a conscientização de demais parlamentares para as pautas indígenas”, pontua.

A necessidade de reforço da ‘bancada do cocar’ é um consenso. O cacique Juventino Pesiana Kaxuyana, que mora em Oriximiná, no Oeste do estado do Pará, reconhece que Joenia Wapichana fez muito sozinha. “Mas se tivermos mais apoio, podemos fazer muito mais”, disse ele em uma reunião com Maial Kaiapó, candidata ao cargo de deputada federal pelo Pará. “A política atual não está fácil para nós, os nossos direitos estão sendo violados e o nosso povo massacrado. Temos que lutar contra esses retrocessos e ter um político indígena no parlamento é importante”, completa o cacique.

Antes de Joenia, houve um hiato de 30 anos sem um indígena no Congresso Nacional. O pioneiro no cargo foi o Xavante Mário Juruna (PDT-RJ), eleito em 1982. Joenia abriu a porta outra vez em 2018. Se depender das mulheres indígenas, ela não deve mais se fechar.

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