“Foi aqui, nesta terra, que as coisas se transformaram, por isso me preocupo muito. Quando não tinham os napëpë [não Indígenas, inimigos], quando vivíamos sós, antes do contato, não estávamos assim! Eu sou velha, então eu sei (…) Hoje alguns bebês arrebentam antes da hora [por abortos espontâneos], algumas [mulheres] perdem sangue pela vagina. Minha filha perdeu o bebê, aconteceu isso com ela também. […] O lugar onde viviam nossos antepassados era muito limpo, por isso estávamos bem. Agora estamos perto da terra dos brancos e por isso estamos tão mal.”
São 3h30 da manhã dentro da casa coletiva da aldeia Monopi. A voz de uma Yanomami mais velha se mistura no meio da madrugada aos sonhos e ao canto dos grilos na floresta. Ela faz um discurso público conhecido como hereamu, uma fala que acontece somente à noite e é feita por pessoas que dispõem de alguma autoridade na comunidade, geralmente homens. Através desses discursos os Yanomami transmitem notícias, resolvem problemas, organizam as atividades do dia e passam lições aos mais novos.
Casa coletiva na comunidade Monopi, na região da Missão Catrimani. A Terra Indígena Yanomami tem cerca de 370 aldeias. Foto: Ana Maria Machado/ISA
Na casa de Monopi as mulheres mais velhas vindas de várias aldeias se alternam em seus discursos. Aqueles que já acordaram escutam e às vezes comentam o que está sendo dito. Aos poucos, o local começa a ganhar vida e o hereamu passa a disputar espaço sonoro com as conversas sussurradas pela casa que desperta. São 5 horas da manhã e os últimos cantos dos grilos se misturam aos primeiros cantos dos pássaros. Logo alguém diz: “Já está clareando, vamos acabar o hereamu”, e encerram-se as falas.
A claridade começa a penetrar na maloca de teto alto em formato cônico e agora é possível enxergar as mais de 70 redes que se espalham pela casa. Ao menos 55 delas são ocupadas por mulheres, que estavam ali para participar do 14o Encontro das Mulheres Yanomami. Em algumas redes as pessoas ainda se espreguiçam, se balançam. Há as que já se levantam e começam a sair por alguma das quatro portas da grande casa coletiva feita de palha de palmeira de ubim. Saio com o grupo de mulheres da aldeia Demini, distante 20 minutos de voo dali – ou três dias de caminhada pela floresta. Vamos tomar banho no Arapari, um pequeno rio de águas barrentas. Depois de ser servido o café da manhã com bolachas e mingau, a reunião será iniciada.
O encontro anual das mulheres acontece na Terra Indígena Yanomami desde 2008. Começou a ser organizado por um grupo de Indígenas mais velhas da região da Missão Catrimani, juntamente com a irmã Mary Agnes Mwangi, missionária queniana da Missão Consolata, ligada à Diocese de Roraima, que dedica sua vida ao trabalho humanitário com os Yanomami há 23 anos. Em 2014, novos parceiros como a Hutukara Associação Yanomami e o Instituto Socioambiental se somaram à iniciativa, que se tornou um dos grandes eventos anuais da Terra Indígena. Este ano, ele reuniu mulheres Yanomami de 27 das mais de 370 aldeias que existem no território. A anfitriã, Chiquinha, que nunca pisou em outro solo que não fosse o da floresta, passou meses com as pessoas de sua comunidade dedicada à organização da chegada das visitantes.
Este é o primeiro encontro após o fim do governo de Jair Bolsonaro, quando milhares de garimpeiros invadiram o território e levaram doenças e fome para os Indígenas. O clima é de reconstrução, mas também de apreensão. Ainda que uma força-tarefa de saúde tenha sido criada pelo governo de Luiz Inácio Lula da Silva no início de 2023 e as fiscalizações ambientais tenham aumentado, há muito a ser feito. A frase que se repete na fala de várias mulheres é Temi totihi piriowi – “Viver bem e com saúde”–, o que não tem sido possível em muitas áreas do território, invadidas pelos garimpeiros que levam doenças.
O tema principal da reunião de sete dias é a saúde da mulher, algo abandonado durante o último governo. Para que se possa reerguer um programa de saúde capaz de lidar com as especificidades da etnia foi preciso criar uma aliança entre mulheres Yanomami e não Indígenas. Essa rede, articulada por Manuela Otero, do Instituto Socioambiental, foi formada entre várias mulheres – Yanomami e não Indígenas – com diferentes trajetórias e formações: médicas, enfermeiras, missionárias, antropólogas e geógrafas. Foi esse encontro improvável entre tantas mulheres que possibilitou discutir com profundidade temas como sexualidade, reprodução, território e saúde.
Mulheres Yanomami, como Ehuana Yaira (esq.), e não Indígenas, como Ana Paula Pina (dir.), definem juntas as bases para políticas de saúde. Foto: Ana Maria Machado/ISA
‘Por que nossas vaginas sangram tanto?’
Se a noite é o momento privilegiado de fala das mulheres mais velhas, durante o dia a reunião no padrão não Indígena abre espaço para a fala de mulheres um pouco mais novas e membros das organizações de apoio. Fazem atividades em grupo e as Yanomami letradas escrevem cartazes sobre temas relacionados à saúde da mulher, com auxílio do conhecimento das mais velhas. As conversas seguem dentro da maloca durante a manhã, mas durante a tarde o calor escaldante causado pelas mudanças climáticas e pelo El Niño nos faz buscar uma clareira na floresta para seguirmos nossas discussões. Uma das mulheres se levanta e discursa na frente:
“Antes, nossas mulheres antigas não tinham dores, estavam bem. Porém, aqui, na terra onde os napëpë estão, nós passamos a ter muitas dores, e isso me deixa realmente muito preocupada. Por que nossas vaginas sangram tanto?”
Por que sangram tanto? Por que as mulheres têm tido tantos abortos espontâneos? As mulheres acompanharam as várias mudanças em sua saúde reprodutiva e sexual ao longo dos anos. Por falta de dados organizados, hoje não é possível dizer qual é o índice de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) nas aldeias do território e nem responder à pergunta dela com clareza. Elas dizem que a situação vem se agravando. Nos últimos quatro anos formou-se uma tempestade perfeita para que a saúde da mulher entrasse em colapso, ao se juntar o desmonte dos programas de saúde com o avanço do garimpo ilegal no território Yanomami.
A invasão garimpeira na TI Yanomami explodiu no início de 2019, com a combinação da alta do ouro no mercado mundial, a diminuição da fiscalização pelo governo Bolsonaro e as próprias falas do agora ex-presidente de incentivo ao garimpo. Milhares de homens invadiram o território e, nas regiões mais afetadas, prostitutas eram levadas de Boa Vista para o trabalho sexual, mas muitas meninas e mulheres Yanomami também acabaram se prostituindo nos últimos anos. Segundo relatos dos próprios Yanomami, meninas mais novas valem mais. Assim, meninas a partir de 11 anos tiveram seu corpo violado e invadido por moxi xawarapë, a palavra já gasta durante o encontro das mulheres: “os pênis cheios de doenças”.
Em regiões onde não há grande presença de garimpeiros e cabarés, como é o caso da Missão Catrimani, a principal porta de entrada das infecções sexualmente transmissíveis são as idas frequentes de homens Yanomami às cidades. Alguns dos que buscam se aventurar em trabalhos sazonais ou vão para Boa Vista sacar seu salário de agente de saúde ou de professor se envolvem com mulheres e voltam para suas comunidades contaminados por doenças como HPV, sífilis e herpes genital. “Quando os homens hoje vão para lá, eles comem vaginas ruins, eles se contaminam”, é o que diz uma senhora durante a reunião.
Nos discursos das mulheres mais velhas há sempre muita preocupação com a saúde de suas filhas e netas durante a gestação.
“Estou muito preocupada com as doenças, as crianças não têm nascido bem (…) Nossos filhos estão nascendo apodrecidos. Será que as doenças estão fazendo isso com eles? Penso sobre isso com tristeza.”
São inúmeros os relatos de mulheres que contam sobre abortos espontâneos. O corpo delas expele os bebês muito antes do tempo e dão à luz crianças com má-formação, crianças que nascem muito pequenas e que, quando sobrevivem, vivem constantemente adoecidas. As mulheres mais velhas são unânimes em dizer que antes, quando moças, elas não estavam estragadas assim. Apenas um estudo aprofundado poderia descrever os motivos para tantas más-formações fetais e abortos espontâneos, o que não foi feito pelo Ministério da Saúde, mas algumas infecções sexualmente transmissíveis e o mercúrio usado pelo garimpo podem estar relacionados. Um laudo realizado pela Polícia Federal em 2022 sobre a contaminação dos rios na Terra Indígena Yanomami revelou que quatro deles tinham índices de mercúrio 8.600% superiores ao máximo estipulado para águas de consumo humano.
O desafio de reerguer o programa de saúde da mulher dos escombros é enorme. Nos últimos anos, os exames ginecológicos de rotina, como o papanicolau, fundamental para o rastreio de câncer de colo de útero, sumiram dos atendimentos dos postos de saúde na TI Yanomami. Segundo uma funcionária da saúde que teve acesso aos registros do sistema, sua cobertura está em 2% desde 2021. Sem o exame, algumas mulheres descobrem tardiamente o câncer. O descaso também tem acontecido com os exames pré-natais. O Ministério da Saúde recomenda que sejam feitas no mínimo seis consultas durante a gestação, mas entre 2020 e 2022 apenas 4,6% das gestantes, em média, haviam cumprido esse protocolo e 38,2% das mulheres não passaram por nenhuma consulta, de acordo com dados obtidos por SUMAÚMA via Lei de Acesso à Informação. Um pré-natal bem-feito é fundamental para identificar problemas durante a gestação, o que diminui o número de mortes de mães e fetos.
Nas tardes quentes, o calor faz com que a reunião aconteça no meio da floresta, onde o clima é mais fresco. Foto: Ana Maria Machado/ISA
Enquanto sexo e infecções sexualmente transmissíveis são discutidos com as mulheres Yanomami, as várias crianças que acompanham suas mães ou avós durante o encontro seguem correndo e brincando livres. Bebês enredados ao corpo das mães mamam em seios adornados por um fio de miçangas. Na vida Yanomami não há espaços separados ou assuntos proibidos aos ouvidos das crianças. No fluir da vida elas estão presentes em todos os ambientes. Algumas das mulheres que participam da reunião chegam a ter oito filhos. As não Indígenas falam sobre planejamento familiar e contracepção como uma das políticas a serem construídas dentro do programa de saúde da mulher. Neste encontro, o conhecimento Yanomami sobre corpo e sexualidade é colocado lado a lado com o conhecimento não Indígena, validando as diferenças e compreendendo os pontos de diálogo. Só assim, conhecendo a fundo e escutando as mulheres Yanomami em sua língua, é possível germinar as sementes de um programa de saúde voltado para elas.
A atual gestão do Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEIY) quer reestruturar a atenção à saúde da etnia, e o foco na saúde da mulher é parte do projeto. Mas reconstruir o que foi destruído dá trabalho. Nos últimos meses, o DSEI Yanomami ganhou um reforço importante com a chegada da médica Ana Paula Pina. Uma ginecologista com um olhar humanizado sobre a medicina e larga experiência em saúde Indígena. Ela escutava as mulheres Yanomami através de traduções e se emocionava, pois sabe que o desafio é grande.
Uma das convidadas não Indígenas se confundia com uma Yanomami: o corte de cabelo curto, o corpo coberto pelo vermelho do urucum e uma tanga pesimakɨ fazem da enfermeira Clara Opoxina uma figura mítica hoje no território. Clara, que trabalha na saúde Yanomami há 11 anos, atua na linha de frente das regiões mais atingidas pela crise humanitária. Ela tem trabalhado para reabrir postos de saúde que haviam sido fechados e abandonados pela equipe de saúde nos últimos anos por causa do garimpo. O plano é que, nos próximos meses, Clara e Pina possam juntas fazer rastreio de infecções sexualmente transmissíveis e coletas de exames ginecológicos nessas áreas mais impactadas.
O retorno do garimpo
Neste ano, o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami disponibilizou um voo para que quatro mulheres da região das Serras, na fronteira com a Venezuela, pudessem participar do encontro. Elas vivem em algumas das regiões mais afetadas pelo garimpo, pela fome, desnutrição e malária. Ali foi o epicentro da crise humanitária agravada nos últimos anos. As imagens de crianças da região em pele e osso, divulgadas por SUMAÚMA em janeiro, correram o mundo. Agora, passado quase um ano do governo Lula, os garimpeiros começaram a voltar com força, como nos conta Simone, uma liderança forte da região de Surucucu.
“Os garimpeiros acabaram de voltar e por isso estou chorando. Eles voltaram em Parafuri, Xitei, Homoxi. Eu sou xamã e por isso estou falando. Os garimpeiros voltaram a sujar minhas águas, a arrebentar meu solo e fazer buracos novamente. Por que é que os garimpeiros agem com ignorância? Eles já estragaram meu povo Yanomami, já os encheram de vermes, de doenças, de diarreia, já estragaram as crianças. Eles fizeram muitas pessoas de meu povo morrer. […] Os garimpeiros não nos ajudam, apenas fazem filhos [em nossas mulheres].”
Simone é uma das poucas mulheres Yanomami que trabalham como agente indígena de saúde. É também uma das raras xamãs mulheres. Se destaca por atuar através da medicina ocidental e da força dos xapiripë – os espíritos que auxiliam os xamãs. Mas ela diz estar cansada. O retorno do garimpo significa também que a saúde Yanomami agora volta a se deteriorar.
Enquanto o preço do ouro segue subindo nas bolsas de valores mundo afora, atingindo o maior patamar histórico em dezembro de 2023, as águas dos rios da TI Yanomami voltam a ficar cada vez mais barrentas e cheias de mercúrio. Nesses dias absurdamente quentes, as crianças de Monopi se divertem nas águas para refrescar o corpo. Mulheres seguem no caminho da floresta carregando suas panelas e garrafas cheias de água turva pelo barro e provavelmente contaminada pelo mercúrio. Essa é a água que têm para beber e cozinhar. O rio é a vida nessas comunidades. Essa cena é a mesma que há anos é possível testemunhar em todas as aldeias Yanomami. Apenas 13,1% delas possuem infraestrutura de abastecimento de água e em muitas não há igarapés limpos, o que obriga os indígenas a beber água contaminada.
Muitas mulheres durante o encontro reclamam de que os peixes estão sem sabor, como conta, durante a reunião, uma mulher líder da região do Haxiu: Minhas crianças têm fome de carne, elas comem peixes podres e ficam todas com diarreia. Enquanto ela fala no meio da casa, mantém seu bebê de poucos meses agarrado aos seus seios. Um dos riscos da contaminação por mercúrio são os danos neurológicos em bebês. O metal é transmitido pela placenta e pelo leite materno. Muitos desses problemas só se tornam claros à medida que a criança vai crescendo. Só resta desejar que aquele bebê nascido na floresta, rechonchudo e com os cabelos pretos escorridos, não tenha tido seu corpo e seu cérebro consumidos pelo mercúrio, já que nasceu em região muito impactada pelo garimpo.
As mulheres discutem, durante a reunião, os diferentes métodos contraceptivos existentes no SUS. Foto: Ana Maria Machado/ISA
A guerra na Amazônia contra a exploração ilegal pode até arrefecer, como aconteceu do início do governo Lula até agora, mas a ganância tem raízes profundas e a exploração não tem fim. Paz é um substantivo que parece não caber na vida dos Yanomami. Alguns garimpeiros nunca saíram do território, e desde o fim de setembro as associações Yanomami começaram a receber relatos sobre o retorno dos garimpeiros a várias regiões de onde eles haviam sido expulsos no início do ano.
‘Todos os Yanomami estão chorando’
“Vejam como estou magra, é por causa da grande tristeza que estou sentindo (…) [Em nossa terra] tem verminose muito forte, tem crianças desnutridas, outra já morreu. Se vocês forem até minha comunidade, vão ver todos os Yanomami chorando (…) Verão que todas as pessoas estão com malária. Minhas pessoas sobraram em minha comunidade morrendo, minha filha sobrou chorando lá, e eu vim até aqui. Morreu um de nós, e também morreu outro.”
Este relato foi feito por uma das mulheres da região das Serras no primeiro dia de reunião. A suspeita, ainda não confirmada, é que as duas pessoas que morreram em sua região tiveram malária. Dois dias depois de sua chegada, essa mulher já não tinha forças para sair de sua rede, ardia em febre e estava muito fraca. Fez o teste para malária e deu positivo, assim como o teste de outras duas de seu grupo. Entre as quatro mulheres e as duas crianças que foram da região das Serras para o encontro, metade estava com malária.
Tem-se lançado mão de algumas ações para o controle da malária nas comunidades, mas ainda assim o desafio segue sendo gigantesco, principalmente considerando que a volta do garimpo pode impossibilitar a ida de equipes de saúde a várias regiões e levar a um consequente descontrole da doença. Dados compilados pelo Sistema de Informação da Vigilância Epidemiológica do Ministério da Saúde mostram que entre janeiro e outubro de 2023 foram registrados 22.174 casos de malária na Terra Indígena Yanomami, índice ainda muito alto para uma população de 31 mil pessoas, segundo o próprio Ministério da Saúde.
A malária acomete as pessoas de forma a fragilizar todo o corpo, como era o caso de uma criança de 2 anos, vinda da comunidade Pacu, local que recebe pouca assistência sanitária. O menino, que acompanhava sua mãe na reunião, se diferenciava claramente das inúmeras crianças saudáveis e ativas que sempre garantem o agito durante o Encontro das Mulheres. Ele passava o dia enredado ao corpo da mãe, sugando seus seios magros e murchos. Pesava 8 quilos no mês de março, mas em novembro estava com apenas 6 quilos e poucas gramas. Havia contraído sucessivas malárias e sofria por excesso de verminose.
A equipe de saúde, formada por nutricionista e enfermeiros, se preocupava bastante com aquela criança, oferecia suplementos misturados ao mingau, mas ela rejeitava. Uma noite o menino ficou tão fraco que a mãe o levou para ser tratado pelo xamã que dormia na casa ao lado. Sob a penumbra de algumas poucas lanternas e uma fogueira, era possível ver o reflexo do rosto suado do xamã Miguel, que entoava o canto dos espíritos xapiripë e passava as mãos sobre o corpo magro e a pele enrugada da criança no colo da mãe. Ele me dizia que aquela doença vinha dos brancos e não conseguia curá-la. De fato, alguns tipos severos de verminose e também a malária são doenças que não existiam entre os Yanomami. A equipe de saúde foi chamada e, com o consenso do xamã que seguia trabalhando, o enfermeiro optou por colocar um soro de hidratação na criança ali, no chão de terra da maloca, enquanto o menino era acolhido pelos braços de sua mãe.
No dia seguinte ele foi removido para um hospital em Boa Vista com sua mãe e sua avó, mas não sem receio, já que outra criança de sua comunidade poucos meses antes havia sido removida também, mas retornado para a comunidade dentro de um pequeno caixão. Após passar cerca de duas semanas hospitalizado, o menininho agora está em recuperação. Muitas crianças, porém, não tiveram a mesma sorte: dados fornecidos pelo Centro de Operação de Emergências em Saúde Pública (COE) Yanomami revelam que entre janeiro e setembro deste ano 29 pessoas morreram de desnutrição e outras 23 de malária, sendo as crianças as principais vítimas. Entre os 215 óbitos registrados pelo DSEI Yanomami nesse período, 53% foram de crianças com menos de 4 anos.
Ser resistência
A luz do fim de tarde pinta o céu em tons rosados, enquanto casais de araras cruzam o horizonte. Após a reunião, o rio Arapari se enche de mulheres acompanhadas de suas crianças. É um momento feliz e me divirto com as piadas que fazem sobre homens, vaginas e nudez e provocam gargalhadas. Elas nos lembram que a alegria, o humor e o ócio são aliados importantes, mesmo quando se vive em um território que parece ser o eterno palco da guerra do capital contra a natureza.
A pintura com o urucum plantado nas roças, feita por Guiomar (dir.) e Ehuana (esq.), acontece antes de festas e eventos. Foto: Ana Maria Machado/ISA
E esse grupo não desiste da luta: no ano passado o Encontro das Mulheres aconteceu logo após a notícia da vitória de Lula para a presidência, e o clima era de esperança. Elaboraram uma carta em que pediam o fim do garimpo, melhorias na saúde, na educação, e diziam: “Lula, estamos felizes de saber que você vai ser nosso presidente, que vai saber nos escutar e contar com nossa participação no seu governo”.
A carta foi entregue em mãos ao presidente, quando visitou a Casa de Saúde Indígena (Casai) em Boa Vista, no dia 21 de janeiro deste ano, um dia depois de ele ter declarado Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) na saúde Yanomami, uma reação à revelação de SUMAÚMA, no dia anterior, de que 570 crianças com menos de 5 anos haviam morrido nos quatro anos do governo Bolsonaro por causas que poderiam ter sido evitadas se houvesse atendimento de saúde.
Passados mais de dez meses do novo governo, pouco do que pediram na carta melhorou. As mulheres esperam respostas mais enérgicas do governo na TI Yanomami: é preciso combater o garimpo, garantir o efetivo fechamento do espaço aéreo, estrangular a logística que abastece o crime. As Forças Armadas, mesmo com três pelotões dentro do território e vendo passar diariamente os aviões de garimpo sobre suas cabeças, estão se retirando silenciosamente das ações de combate à mineração ilegal, denunciam as lideranças e as associações Yanomami. Além disso, o atendimento à saúde ainda não respondeu de forma satisfatória à crise humanitária, muitos são os Yanomami que continuam perdendo a vida para doenças tratáveis e evitáveis.
Procurado, o Ministério da Defesa afirmou que “o apoio logístico prestado pelas Forças Armadas em Território Yanomami é emergencial e visa suprir as necessidades até que os órgãos, que têm essa atribuição como atividade finalística, possam implementar soluções duradouras”. Disse ainda que desde o início da força-tarefa do governo federal no território, em janeiro, o apoio das Forças Armadas aos órgãos de segurança pública e ambiental resultou em 55 milhões de reais em apreensões e multas, bem como na detenção de 164 garimpeiros, encaminhados aos órgãos competentes. E que 22 garimpos ilegais foram destruídos.
Por nota, o Ministério da Saúde ressaltou que a operação de saúde montada pelo governo federal no início deste ano realizou mais de 13 mil atendimentos, reabriu 35 unidades de saúde e enviou à região 117 profissionais do Mais Médicos. “Sobre a saúde da mulher, vale reforçar que a mortalidade materna, infecções sexuais, doenças sexualmente transmissíveis, entre outros agravos, são efeitos da desorganização social, da perda do modo de vida dos povos originários, [que são] consequências do abandono e do garimpo.” A pasta afirma que estão sendo realizadas ações específicas nos locais mais acometidos pela invasão garimpeira, em que se buscam casos de Infecções sexualmente transmissíveis, câncer de colo de útero e gestantes que precisam fazer pré-natal. O órgão também afirma que ampliou a vacina contra HPV para o público de até 18 anos no território.
A reunião mais bonita da floresta chega ao fim. Várias canoas agora descem o rio Arapari, que se encontra com as águas muito barrentas do rio Catrimani, denunciando a presença de garimpeiros rio acima. Camila, moradora de uma casa próxima, lamenta pelos peixes e pela água contaminada que tem para beber. É grande o aperto no peito, às vezes parece não existir futuro na Amazônia. É triste constatar que a vida dos Yanomami e da floresta depende da fragilidade das decisões tomadas por quem está no comando da presidência da República, no Congresso Nacional e nas Forças Armadas.
Foi um encontro – e no sentido mais profundo. É o solo fértil de onde brotaram sementes plantadas para se reconstruir novos caminhos em uma terra arrasada. Repenso sobre o futuro, olho para Camila ao meu lado com seu olhar sereno fixo no horizonte da floresta e lembro de sua mãe, Chiquinha, e também de Ehuana, Fátima, Simone, Irokoma, Guiomar, Salomé, Maria, Nilsia, Rita, Suhuma, Suzana e tantas outras. A resistência também vive aqui, dentro da Terra Indígena Yanomami, na força das mulheres que dão à luz seus filhos no chão da floresta.
Ana Maria Machado é antropóloga e atua com os Yanomami há mais de 16 anos.
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o inglês: Diane Whitty
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Editoras: Viviane Zandonadi (fluxo de edição e estilo) e Talita Bedinelli (editora-chefe)
Direção: Eliane Brum
Josane, Guiomar e a pequena Evilene são parte da resistência das mulheres Yanomami, as mais afetadas pelo abandono do território nos últimos anos. Foto: Ana Maria Machado/ISA