Todas as manhãs, levo os meus cães para uma caminhada até uma cena de múltiplos crimes, um lugar onde me entristeço pelas vítimas e penso em quem são os culpados.
O local fica às margens do rio Xingu, cinco minutos a pé da minha casa. Publico uma foto dessa vista linda, porém brutalizada, para que vocês percebam a violência que tem sido infligida à paisagem nesses nove anos, desde que visitei Altamira, no estado do Pará, pela primeira vez.
A primeira vítima, muito evidente no primeiro plano, é uma árvore morta, uma entre os milhões que pereceram quando o reservatório da barragem da hidrelétrica de Belo Monte inundou as margens do rio, afogando inúmeras plantas e outras espécies incapazes de fugir da subida das águas.
A segunda pode ser vista na encosta distante, além do rio, ao fundo, onde há duas vastas extensões de campo abertas na floresta por agricultores da região que queriam mais espaço para pastagem do gado.
A terceira é o céu, envolto numa névoa pungente formada por dezenas de incêndios em torno de Altamira nas últimas 24 horas, de acordo com as imagens de satélite da Nasa, a agência espacial do governo dos Estados Unidos.
Em quarto lugar está o próprio rio Xingu. A mais chocante das vítimas recuou para níveis não vistos na memória recente como resultado da longa e quente estação seca. Em comparação com o pico da estação chuvosa, sua profundidade caiu 4 ou 5 metros.
O lugar onde eu costumava nadar é agora um amplo lamaçal. Pedrais tornaram-se visíveis onde antes passava o caudaloso fluxo do rio, formando dezenas de novas ilhas e dificultando a navegação. O impacto sobre outras espécies é imensurável.
A ocorrência de tais horrores era bastante previsível. Em junho de 2023, escrevi que a soma do El Niño com a crise climática criaria uma emergência dentro de uma emergência e que as autoridades brasileiras precisavam se preparar, já que isso quase certamente significaria uma seca severa para a Amazônia.
Mas houve pouca ou nenhuma preparação. Por toda a Amazônia, as unidades de combate a incêndios têm se exaurido e os sistemas de transporte são interrompidos pela gravidade da seca prolongada. Enquanto isso, os grileiros de terra pioram o cenário ao iniciar incêndios para varrer a floresta, aproveitando as condições secas da madeira.
As chamas continuam causando problemas muito depois de as brasas se apagarem. Inúmeros estudos revelam que o desmatamento tem um efeito de aquecimento local, regional e global, além de enfraquecer a capacidade de gerar chuvas inerentes à floresta tropical. Substituir as árvores por bois e vacas, algo comum em Altamira e em grande parte da Amazônia, é pior porque o gás metano emitido por arrotos e flatulências desses animais é ainda mais potente do que o dióxido de carbono. Um dos dados mais chocantes evidenciados nas últimas semanas foi o estudo que demonstrou que, quando o papel da pecuária é incluído no desmatamento, os mais de 220 milhões de vacas e bois do Brasil (quase metade deles na Amazônia) têm uma pegada climática maior do que todas as fábricas, carros, centrais elétricas e os 125 milhões de habitantes do industrializado Japão.
A caminho da morte: no Pará, uma operação do Ibama na Terra Indígena Ituna/Itatá encontra fazendas ilegais de animais que depois do resgate são levados para o frigorífico. Fotos: Lela Beltrão/SUMAÚMA
A conclusão nos leva à questão de vital importância para a Justiça e para as soluções: quem são os culpados? Certamente não são os bois inocentes que em breve serão abatidos, embora eles nos conduzam a um grupo de responsáveis: os fazendeiros e grileiros e, por trás deles, as empresas globais de carne que ganham bilhões de dólares a partir da devastação da Amazônia e do clima global, ao mesmo tempo que fecham os olhos para a contínua carnificina.
Um novo estudo divulgado pela Radar Verde mostra que 90% das terras desmatadas na Amazônia viram pastagens, mas quase nenhum frigorífico ou varejista tem medidas adequadas para limitar, ou mesmo monitorar, quanto dessa destruição faz parte das suas cadeias de abastecimento. Das 201 empresas pesquisadas, apenas duas se aproximam de comportamentos corporativos responsáveis: o grupo de supermercados Pão de Açúcar e a cadeia de frigoríficos Marfrig. De longe, a pior empresa foi a JBS, a maior produtora de carne bovina do mundo, que tinha mais frigoríficos em áreas que estavam, à época da pesquisa, altamente desmatadas, embargadas ou com risco de desmatamento futuro. A multinacional é certamente culpada pela crise climática. E ela não está sozinha.
Há quem argumente que a humanidade como um todo é responsável por esse horrendo ano de calor assassino, incêndios mortais, inundações devastadoras e outras calamidades climáticas no planeta, mas isso é apenas parcialmente verdade. Sim, os extremos foram, sem dúvida, agravados pela queima de combustíveis fósseis. O mundo está cerca de 1,3 grau Celsius mais quente do que no início da Revolução Industrial. Há evidências crescentes de que isso torna os eventos do El Niño mais prováveis. No entanto, apesar do número cada vez maior de mortes de todas as espécies por causa do calor, a humanidade está emitindo mais gases de efeito estufa do que nunca.
Em meados de novembro, uma leitura do observatório de Mauna Loa (a estação de medição atmosférica de referência mundial, que fica no Havaí) deixava evidente que os níveis de CO2 atingiram 422,36 partes por milhão (ppm). São 5,06 ppm a mais do que no mesmo dia de 2022 e provavelmente o maior aumento já registrado num período de 12 meses – mais do que o dobro da média anual da última década. Pode ser que a erupção do vulcão Mauna Loa tenha tido alguma influência nesses números. Mas, se isso não ocorreu, eles são a prova mais explícita de que a nossa espécie tem se mostrado incapaz de resolver a crise climática que provocou.
No entanto, “nós” não somos igualmente culpados. De jeito nenhum. Existe uma grande divisão de carbono entre os super-ricos com ar-condicionado, que viajam pelo mundo em iates de luxo, e os pobres e mais vulneráveis às piores consequências climáticas, mesmo que sejam menos responsáveis por ela. A partir de dados de 2019, um novo estudo da Oxfam e do Instituto do Ambiente de Estocolmo destaca essa enorme distância e suas consequências:
- O 1% mais rico do mundo (pessoas que ganham mais de 140 mil dólares ou 419 mil reais ao ano) emite mais poluição por carbono do que os 5 bilhões que constituem os 66% mais pobres
- Um ano de emissões do 1% mais rico provavelmente causará 1,3 milhão de mortes a mais por calor nas próximas décadas
- Durante o período de 1990 a 2019, o impacto das emissões acumuladas do 1% teria sido equivalente ao impacto de erradicar as colheitas do ano passado de milho na União Europeia, de trigo nos Estados Unidos, de arroz em Bangladesh e de soja na China
- Os 10% mais ricos (que recebem pelo menos 41 mil dólares ou 152 mil reais por ano) são responsáveis por 50% de todas as emissões. Eles podem se sentir menos responsáveis do que os super-ricos, mas há muitos mais deles, por isso a combinação do impacto de ambos é considerável
O abismo não diz respeito apenas à riqueza e às emissões, mas também às emoções e ao poder. A ansiedade climática significa coisas diferentes nos dois lados dessa divisão de riqueza. Para os pobres, predomina o medo do calor e das inundações. Entre os que estão no topo, o maior medo é das pessoas cada vez mais desesperadas abaixo delas. Como interpretar os multimilionários que planejam bunkers na Nova Zelândia e no estado de Nevada, nos Estados Unidos, ou aqueles que se lançam para fora do planeta em imensos foguetes privados e falam em colonização espacial? Em vez de fazer todos os esforços para reduzir emissões, essas pessoas estão aumentando a pegada de carbono e colocando mais distância entre elas e as massas.
O relatório da Oxfam mostra que as classes de tomadores de decisão que vão dominar a COP-28 em Dubai também estão entre o 1% mais favorecido. São políticos seniores e altos empresários e executivos que possuem ações em companhias petrolíferas ou grandes fatias do setor agropecuário. Eles viraram um obstáculo à mudança. Dario Kenner, autor do livro Carbon Inequality: The Role of the Richest in Climate Change (Desigualdade de carbono: o papel dos mais ricos nas mudanças climáticas, em tradução livre), identificou o que ele chama de “elite poluidora”: qualquer pessoa com um patrimônio líquido acima de 1 milhão de dólares (4,9 milhões de reais) que reforça o uso de combustíveis fósseis através de seu estilo de vida de alto carbono, investimentos em empresas poluidoras e influência política.
Na edição deste ano, será difícil escapar da conclusão de que o processo da conferência climática das Nações Unidas foi capturado pelos interesses do petróleo. Os participantes da COP-28 só precisam atravessar as saídas de segurança do centro de convenções em Dubai para testemunhar a divisão do carbono. Os Emirados Árabes Unidos são uma das nações mais desiguais do mundo, em grande parte como resultado da riqueza que seus governantes acumularam ao bombear petróleo e gás para fora do deserto e da exploração e das condições precárias dos trabalhadores migrantes que constituem mais de 80% da população.
O governante dos Emirados Árabes, o xeque Mohamed bin Zayed Al Nahyan, faz parte da família mais rica do planeta. Os Al Nahyan dominam um país que detém 6% das reservas mundiais de petróleo, no valor de mais de 300 bilhões de dólares (1,5 trilhão de reais). A pegada climática de seus investimentos é igualmente espetacular. Entre outros empreendimentos, a família real de Al Nahyan tem participação direta ou indireta no clube de futebol Manchester City, numa pista de corridas de Fórmula 1, no parque temático indoor Ferrari World e na fabricante de espaçonaves SpaceX. Em outubro de 2023, o grupo aumentou sua participação na empresa indiana de mineração de carvão Adani Enterprises. A família controla a International Holding Co., que recentemente recebeu a avaliação das ações que mais crescem no mundo – 28.000% em apenas cinco anos. O xeque tem três superiates, dois jatos privados e vários palácios.
Entretanto, no outro extremo da escada social em Dubai fica a força de trabalho migrante vulnerável ao clima, vinda em boa parte da Índia, das Filipinas e do norte da África. São trabalhadores que estão nos canteiros de obras, nos restaurantes e nas equipes de limpeza dos escritórios, com rendimentos mensais que variam de 300 a 750 euros (1.600 a 4 mil reais), o que mal dá para cobrir o aluguel no petroemirado. O consumo de carbono dessas pessoas é marginal e a sua exposição ao clima é perigosamente elevada. Elas sofrem um número desproporcional de casos de insolação, já que muitas trabalham ao ar livre em temperaturas acima dos 40 graus Celsius. Se as temperaturas globais subirem 3 graus Celsius acima dos níveis pré-industriais, que é para onde o mundo se dirige, então o número de dias extremamente quentes duplicará na capital Abu Dhabi.
Desigualdade: em julho de 2023, trabalhador tenta se refrescar no calor de 40 graus Celsius de Dubai. À direita, o xeque Mohamed bin Zayed Al Nahyan embarca no próprio avião depois de visitar a França. Junho de 2022. Fotos: Karim Sahib e Giuseppe Cacace/AFP
É uma história semelhante em muitas partes do mundo nas quais a temperatura se tornou um marcador de status social. Os edifícios com ar-condicionado excretam calor nas ruas, tornando-as ainda mais quentes. Em Mumbai, na Índia, a imensa favela de Dharavi é pelo menos 5 graus Celsius mais quente do que os condomínios fechados da classe média da vizinhança. Em São Paulo, no Brasil, dezenas de milhares de moradores da abafada favela de Paraisópolis olham para os seus vizinhos ricos da classe média numa torre residencial onde cada um dos 13 andares tem uma varanda com piscina.
São exemplos que mostram como a desigualdade está crescendo dentro dos países, mesmo que encolha ligeiramente entre os países. A desigualdade e a injustiça climática estão interligadas com o sexismo, o racismo, a negação dos direitos indígenas e outros impulsionadores da desigualdade. Estudos mostraram que os residentes negros de Nova York têm duas vezes mais probabilidade de morrer de doenças relacionadas ao calor do que os moradores brancos. Os bairros negros das cidades de Nova Orleans e Houston sofreram as maiores perdas com o furacão Katrina e o furacão Harvey. As comunidades indígenas na Amazônia brasileira estão agora na linha de frente da seca, embora a maioria delas tenha estilos de vida que colaboram para a absorção do carbono devido ao seu papel fundamental na gestão das florestas tropicais.
O que tudo isso nos lembra é que a desigualdade e a crise climática estão intimamente ligadas. Neste momento, uma coisa piora a outra e deixa a solução ainda mais distante. Do lado positivo, no entanto, essa constatação pode ser valiosa. A justiça climática poderia melhorar a vida da maioria das pessoas e obrigar os super-ricos a estabelecer uma relação menos temerária com o resto da humanidade. Altos impostos sobre os bilionários e os grandes emissores poderiam financiar uma transição justa, com dinheiro para formas mais limpas de energia e suporte para as comunidades mais afetadas por eventos climáticos extremos. Primeiro, porém, os 66% precisam recuperar o controle político que está nas mãos do 1%. É algo que pode parecer impossível hoje, mas será essencial na medida em que mais pessoas humanas sofrem das consequências de mais crimes climáticos, enquanto os causadores se isolam em bunkers, navegam em iates ou tentam se lançar para fora do planeta, rumo ao espaço.
Quando levo meus cachorros para uma caminhada, por mais quente que esteja, sei que daqui a cinco anos o calor de hoje vai parecer fresco. E por mais que terra, rio e céu da Amazônia estejam degradados agora em comparação com 2014, quando cheguei a Altamira pela primeira vez, provavelmente serão uma doce lembrança se eu voltar aqui em 2034. É tarde demais para acabar com isso, mas ainda podemos interferir no aumento da temperatura e na escala dos danos se nos lembrarmos não só de que todas as pessoas estão juntas neste planeta, mas de que algumas têm muito mais responsabilidade de mudar do que outras.
Nota sobre dólar e real: os valores da faixa de renda do 1% e dos 10% mais ricos são expressos em dólares americanos PPP – do inglês purchasing power parity (paridade do poder de compra). Essa métrica é usada para comparar moeda, renda e poder de compra entre os países, tendo como referência o dólar.
A conversão de dólares PPP para reais brasileiros foi feita utilizando a razão de conversão PPP da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) para o Brasil de 2017, ano que foi utilizado no relatório da Oxfam, que é de 2,18 reais para cada 1 dólar. O resultado foi posteriormente corrigido para levar em conta a inflação de 2017 a 2023 utilizando o índice IPCA.
Os outros valores em dólares e euros citados neste artigo foram convertidos para reais na taxa de câmbio de 30 de novembro de 2023, respectivamente 4,92 reais e 5,36 reais.
Texto: Jonathan Watts
Checagem: Plínio Lopes
Revisão ortográfica (português): Valquíria Della Pozza
Tradução para o espanhol: Meritxell Almarza
Tradução para o português: Denise Bobadilha
Edição de fotografia: Lela Beltrão
Montagem de página e acabamento: Érica Saboya
Fluxo de edição e estilo: Viviane Zandonadi
Direção: Eliane Brum